^
subir

Uma fábrica natural de água e vida. A destruição que uma cidade moderna, sem cultura de preservação, produz: doenças, fome, desmatamento e poluição. Reportagem em profundidade mostra que é possível reverter, com qualidade de vida para a população, para a mata e para o rio.

• Reportagem publicada em 15 de janeiro de 2021 •

A bacia do Rio Vacacaí-Mirim é um parque natural encravado entre as cidades de Santa Maria e Itaara, na região central do Rio Grande do Sul, estado mais meridional do Brasil. Um vale cercado por morros com um rio e 70% de cobertura vegetal. Uma região de nascentes e pequenas propriedades com vocação para ser o contraponto à cidade de concreto. Esta reportagem mostra as qualidades e problemas que existem no Lado Verde de Santa Maria, uma verdadeira fábrica de água que sofre com invasões, desmatamento, colocação irregular de esgoto e lixo no manancial que abastece 40% da água consumida no município.

Uma equipe de dois jornalistas e três engenheiros florestais percorreu por uma semana todo o vale conversando com os moradores e analisando a realidade e potencialidades para a melhoria na qualidade de vida da população da região. O que foi apurado foi comparado com outras reportagens feitas pela mesma equipe 10 anos atrás de forma a dimensionar o impacto do crescimento urbano desordenado na região. Existem muitos problemas e também muitas soluções. Conheça nas páginas a seguir as histórias, personagens, atitudes, ações e desafios para criar uma cultura para a utilização da área do lado verde de Santa Maria. Este trabalho é um chamado para que as pessoas conheçam e usufruam deste enorme patrimônio público.

Tudo se resume em uma frase: “Quem não vai, não vê.”

Nós fomos. Agora é a sua vez.

“EM LEVEZA O CÉU SE ABRIU”

Minha roupa tem cheiro de mato. Meus pés tocam o chão gelado e úmido. Meus olhos estão saturados de verde. As pernas fatigadas pedem descanso, mas a cabeça mantém o corpo em movimento. A boca seca como há muito não secava. Quase falta o ar, mas o coração segue bombeando. Acelerando o sangue que circula nas veias. Caminhamos nas veias de pedra de um rio. Vamos pelas artérias principais, enxergamos algumas secundárias, mas a maioria está invisível aos olhos, aos meus olhos destreinados. São milhares de nascentes. Nunca ninguém contou, nem poderia. Ali tudo muda e por isso é forte e vivo. Viver é mudar sempre. O que para de mudar, morre. Os caminhos nunca são os mesmos para a água. Mas a água nunca para. Brota de muitos pontos, faz trilhas, derruba obstáculos impossíveis, esculpe terra, árvore e pedra como um escultor inspirado. Transforma um toco podre no rosto de uma coruja. Produz cenários mais detalhados que qualquer barroco, mandalas ou arabescos. Não há limite ao impulso criador do rio ao se fazer rio. Os meus pés descalços no chão conectam imaginários ancestrais ao som das folhas secas, gravetos e galhos que vou pisando. Mergulhar em um vale profundo de rio é como mergulhar em nosso passado. Está tudo lá. Todos os passados e presentes se entrelaçam num universo de possibilidades de futuro.

A água é viva. Bom, eu estava ali. Contemplava uma cachoeira em meio a uma mata exuberante de verdes. Para chegar ali foram mais de duas horas caminhando por trilhas cada vez mais isoladas da presença urbana. Primeiro ficara para trás o núcleo urbano duro e cinzento, dos prédios e asfaltos. Em seguida também foi se transformando em murmúrio o cotidiano barulhento de vozes, músicas e cachorros dos arrabaldes. O sol forte incide direto no meu rosto. Faz calor e a garganta seca na primeira subida mais forte. A floresta já não está mais tão longe. Subitamente, após uma bela subida em curva, adentra-se em um universo úmido de exclusivos horizontes verdes e curtos. Logo, a água vai se fazendo presente, sutil, escorrendo das encostas, suavemente. Mais adiante brota das pedras em nascentes que se derramam em direção ao leito pedroso ornado por vegetação múltipla. A junção dos pequenos córregos dá força ao curso d’água.

O sobe e desce faz brotar o suor dos corpos que avançam na trilha. O calor da mata e o gelado do rio se complementam, desnorteando os sentidos. Vencido o percurso mais difícil, uma longa e íngreme subida, serpenteamos por caminhos obtusos, de lá para cá, pelas acidentadas margens do Rio Vacacaí-Mirim, em Santa Maria (RS). A paisagem me é surpreendente ( ). Enxergo uma pedra repleta de musgos que revela a vida fixada à rocha para os olhos já cansados do esforço. O som da queda d’água me chega aos ouvidos. Em poucos passos, vislumbro agora a cachoeira. Meus pés descalçam-se. Os dedos dos pés tocam o chão gelado e amassam folhas. Imerso no verde com o verde imerso em mim. Em poucos instantes minhas vivências urbanas são apenas fantasmas estranhos. É outro agora, um outro que sempre foi sem se dar conta. Seu passado infiltrado no presente alterando caminhos para um futuro em aberto. Ali, naquele clarão onde a pedra vence a árvore e a água vira céu.

“O PAMPA INFINITO E EXATO
ME FEZ ANDAR”

Vale do Rio Vacacaí-Mirim com o lago da barragem do DNOS ao fundo e os morros no seu entorno.

No jardim dos caminhos que se bifurcam

Uma esponja gigante, de cor amarronzada, feita de rocha, com milhões de poros. Arenito. Formação geológica de alta incidência na região da depressão central, no oco do meio do Rio Grande do Sul. Enredado milenarmente em tempos arcaicos com o derramamento de basalto que vem do centro da América do Sul, o arenito que eu seguro em minhas mãos se esfarela sob a pressão do meu polegar. A mão fica com a cor única da terra missioneira, um tom entre ocre, laranja, vermelho e marrom. Cor de tijolo. Cor das paredes das igrejas dos Sete Povos das Missões, 300 quilômetros a Oeste do lugar onde estamos.

– Olha aqui ( ) – aponta Alessandrinho mostrando um grande bloco de rocha no costado da trilha que vai para o topo do morro – é um Arenito.

Alesandrinho é o diminutivo de Alessandro Miola, Engenheiro Florestal, um homem baixo, atarracado, de sorriso farto e apaixonado por fazer trilhas e rappel em lugares de difícil acesso. Ele retira a rocha do chão e logo se forma um bolinho na sua volta. Com a luz forte de meio dia os pequenos cristais brilham em meio ao marrom. Uns pedaços, da face que estava para baixo, está escurecido, úmido.

– É um afloramento do Botucatu? – indaga Bita – É sim – completa seguro de si por trás das lentes muito escuras dos óculos que o Engenheiro Florestal não dispensa em suas recorrentes caminhadas com os colegas pela região dos interiores de Santa Maria.

– Olha ai, Cadré. É assim que é formado o Aquífero Guarani. A água se infiltra no subsolo e o arenito vai acumulando o líquido nele.

– Tipo uma esponja – digo, buscando uma simplificação.

– É, mais ou menos – corrige Paulinho, nosso guia do mato e também Engenheiro Florestal, um entusiasta da preservação ambiental que estudou a bacia hidrográfica do Vacacaí-Mirim por mais de 10 anos.

– Tira uma foto, Charles – berro para o colega que vem lá atrás na subida.

– Da pedra? – pergunta Charles, fotógrafo que fez comigo há 10 anos duas reportagens sobre a região e que agora registra visualmente as mudanças no local.

– Sim – digo, separando um pequeno pedaço no bolso da jaqueta verde de nylon que me protege do sol.

A missão de hoje, segundo dia de trabalho deste grupo de amigos e colegas de muitas trilhas nos matos é uma “leve caminhada” pelo topo dos morros que conferem o diferencial paisagístico de Santa Maria. A cordilheira verde do Norte. Se para os três Engenheiros Florestais andar por estes morros é como fazer o tema de casa, para mim, repórter, é uma aventura fora da normalidade. Ontem, numa puxada mais fácil, ficamos zanzando para cima e para baixo do Morro do Cechela, sob chuva e cerração. Em todos os anos em que vivi na cidade (e foram muitos), bebi a imagem destes morros à distância, como a maioria dos moradores. Eu me embriagava de verde olhando pela pequena janela do apartamento em que morei na rua Venâncio Aires, o famoso prédio da Caixa D’água. Deixei a marca dos cotovelos na madeira da janela e coloquei uma rede na sala para ficar observando o verde dos morros. E ficava imaginando se um dia andaria por aqueles lugares. Horas antes, o dia mal nascia, em uma terça-feira, e meus olhos sonolentos acabavam de verificar a bateria da máquina Nikon D-90 que me acompanharia na trilha

EM TODOS OS ANOS EM QUE VIVI NA CIDADE BEBI A IMAGEM DESTES MORROS À DISTÂNCIA, COMO A MAIORIA DOS MORADORES.

– Vou tirar uma foto – disse para mim mesmo e para a escolta de três gatos que observavam meus movimentos.

Apontei, pela janela, o ângulo dos morros. Um novo prédio, alto, limitava a mirada à direita. Me torci e fiz o foco no verde infinito. OK. A primeira imagem do dia era uma das mais familiares na minha mente. Era para lá que eu rumava, para cima dos morros. De carro, ficamos na primeira rua à esquerda depois dos trilhos, no comecinho do Bairro do Campestre do Menino Deus, zona norte de Santa Maria, região limite entre a área urbana e a rural da cidade, separadas pelos trilhos do trem. Agora, meu amigo, só as suas pernas podem lhe levar aonde você nunca chegou.

Vamos andando na trilha que leva até os morros de Santa Maria, sua indiscutível identidade visual. Andamos no mundo “reserva especial”. Nas localidades mais fantásticas que estão ao alcance dos pés da cidade que segundo a estimativa do IBGE para 2013 tem 273.489 mil habitantes. Destes, 248.347 mil vivendo em área urbana, os apartados do verde. Na área rural, apenas 12.684 mil.

Somos hoje seis pessoas. Os três Engenheiros Florestais (Paulo Dill, o Paulinho, Alessandro Miola, o Alessandrinho e Alessandro Herbert, o Bita), dois Jornalistas (Carlos Dominguez, o Cadré, e Charles Guerra) e um amigo que por gostar de trilhas e mato se juntou ao bando de última hora. Os três “florestais” são especialistas na região e veteranos de trilhas, escaladas e acampamentos nos morros e rios. São eles que vão nos guiar nesta aventura. Aqui, a cidade já é vila. As casas são pequenas e os terrenos grandes. Em comparação com o “apertamento” onde dormi, os terrenos são vastos. Pegamos uma rua e vamos em direção ao fim dela. Dos dois lados da rua o festival de cachorros é atordoante. A cuscalhada vai berrando à medida que nós passamos fazendo, talvez até mais algazarra que os cães, com muitas conversas em voz alta e implicâncias, como sempre fazíamos nestas situações. Todos naquele bando se conhecem há bastante tempo. E havia muitos assuntos atrasados. Na região, são casas modestas, com jardins precários, sem esgoto, em rua de chão batido. Algumas residências têm aspecto e cor de casa nova. Outras não passam de barracos erguidos mais no esforço do que no jeito. Nas casas, pela metade da manhã, só vemos mulheres e crianças. E cachorros, uns bem vivos, outro sonolentos e um morto abandonado na lateral da via. Os rostos nos olham curiosos e indagantes – não somos deste filme – será da prefeitura ou dá polícia… já foi.

Equipe inicia a caminhada para subir morros e vencer a muralha verde

Quando nos aproximamos do sopé do morro, a rua termina em uma cerca alta. Paulinho, o que conhece os caminhos, dá a sentença.

– Não é essa rua – alardeia, fazendo com que os outros se aproximem.

Poucos segundos de falação e Paulinho se joga no mato à direita “para dar uma olhada” e os outros ficam esperando. No olho do sol. Eu escrevo. Charles fotografa e os outros conversam das mudanças do local, das casas que avançam no morro, de que ali antes era apenas mato.

É aqui – berra Paulinho emergindo do buraco onde se socara para logo desaparecer nas árvores.

Sempre fiquei impressionado com a maneira que o pessoal da Florestal se orienta. Sem titubear todos se jogam no encalço do Paulinho como se por ali houvesse de fato um caminho. Mas não havia. Como sempre, eu e Charles fechamos a fila. Ele, por conta das fotos, eu por uma lentidão de passadas que são assim mesmo. Lentas. Cruzamos um matinho e logo surge um pequeno córrego, com uma pinguela de tronco. Mais barro e banhado do que rio. Mas um indicador de que estamos na região úmida, onde a água desce do morro e vai em direção do Vacacaí-Mirim que corre uns quinhentos metros abaixo. Paulinho já está do outro lado da pinguela esperando para caçoar de quem escorregar. Passa um, passa dois e eu nem tento, vou direto por baixo, seguido do Bita. Melhor um barro nas botas do que um tombo espetacular. Passamos todos e ficamos esperando o Charles cruzar, mas o tombo esperado não acontece. Alarme falso.

Caímos todos logo a seguir na rua certa e vamos subindo no olho do sol de meio dia. Até colar no morro e subirmos até os trilhos.

No meio do caminho uma placa. “Você está no Parque do Morro”, iniciativa da prefeitura municipal que criou o projeto deste parque no município (confira os projetos no site do IPLAN). A partir daí a subida fica bem íngreme até encontrar os trilhos. Uma pequena pausa e vamos para a trilha de fato. Deste ponto em diante só vamos encontrar uma casa por volta das 17 horas, quando descermos o Morro do Link, do outro lado do paredão verde. Ninguém mora nos altos dos morros. Perfeito para um parque e uma área pública de lazer. Já existe uma infraestrutura mínima de estradas de acesso. Os trilhos podem ser usados para um trem turístico (Já existe um projeto de parceria da prefeitura com a ALL, empresa privada que explora a concessão das redes ferroviárias. Faltam recursos para financiar a iniciativa). Adeptos de trilhas podem percorrer os caminhos, facilmente demarcáveis. Restam os problemas de segurança, preservação e inclusão social. Nada que não possa ser resolvido. Logo que acaba a rua, um pouco de mato e os trilhos. É por ali o caminho, até uma pequena sombra onde o pessoal se reúne para fazer uma foto.

– Agora é que começa a subida – brinca Paulinho, me dando um tapa nas costas.

Cruzamos uma porteira caída e vamos na trilha, que ali receberia uma camionete 4×4 sem maiores dificuldades. É a parte pelada da encosta. Quente e seca. Por aqui, poderiam passar veículos de controle do parque e existir estações de recebimento de turistas.

Trilhos do trem marcam o contorno das encostas dos morros. Daqui para cima a subida fica mais difícil por conta do terreno

Depois de caminhar por quase uma hora na sinuosa trilha nos deparamos com uma clareira, criando um costado de morro macabro, com uma sucessão de paus retorcidos de árvores ressecadas, como mãos de defuntos apontando o céu.

– Aqui teve uma queimada ( ). Não tem como saber se foi natural ou para criar uma área de pasto – diz Paulinho.

A área queimada destoa do paredão verde e das florações amarelas e vermelhas que compõem um quadro impressionista.

A mata já foi mais verdejante em tempos idos. Primeiro a exploração da madeira, depois a passagem dos trilhos. Hoje uma criação de animais inviabilizada pelo roubo de gado. Pouco serve, hoje, para a exploração comercial o topo da cordilheira de verde que abruptamente autoriza o pampa a iniciar a ser uma planície infinda, logo ali adiante, do outro lado. Aqui o Rio Grande se significa em dois. Dois pedaços de rincão. Duas moradas gaúchas, de lá e de cá. Aqui os Tapejaras farejavam as verdadeiras trilhas para vencer a serra. Mas de fato, ainda nem chegamos ao topo. Ainda estamos subindo, parados em uma área queimada. O nosso convidado voluntário, um anônimo para minhas lembranças fisionômicas ainda não disse sua frase emblema: “quem não vai, não vê”. Não, ele ainda rumina suas futuras palavras embaixo da barba espessa. Já tirou a camisa para – como diria minha vó: “tirar o mofo do inverno” – revelando um corpo branco alvo que mais contrasta com o universo verde ensolarado.

Sim, aqui já estamos no morro, mas em sua encosta. O claro vira escuro. Onde começa o verdadeiro verde. O verde que só se pode vislumbrar ao emergir nas trilhas das encostas. Com o verde vem a água que brota das encostas umedecendo as trilhas e criando barro que afunda no peso das minhas botas. Pegadas na lama se formam em meio a pequenas pedras que estão por todos os lugares. Aqui a tríade de pedra, água e verde leva o caminhante a penetrar em outro mundo, um cosmos ancestral de águas que brotam e descem os peraus rumo ao leito do Vacacaí-Mirim. Lá embaixo, o rio e o lago são apenas paisagens que surgem nos claros esporádicos.

Entre arenitos e basaltos vamos adiante. O percurso é composto de retas ascendentes e curvas abruptas num chão cascalhado, cheio de pedras soltas. Em uma destas curvas, um espaço perfeito para um acampamento. Em generosa sombra serrada, várias rochas servem de bancos. Olhando, em meu geologismo amador, percebe-se que rolaram da parte alta. O ponto é propício para uma descansada. Um enorme arenito, algo como uns seis metros de altura e três de largura fica bem ao lado da estrada. Já tem um “chapéu verde”, é uma rocha que está ali há tanto tempo que formou um jardim no topo. Alessandrinho tenta uma escalada só com as mãos. Identifica pontos de apoio, e relembrando os movimentos que aprendeu em rappel e montanhismo tenta alcançar o topo. Não consegue de primeira. Nosso colega-barbudo-que-eu-não-lembro-o-nome também tenta. Vai mais longe, mas fica pela metade. Alessandrinho ainda vai mais uma vez e chega pertinho do topo, mas faltam pontos de apoio. Mesmo assim recebe os urras e vivas de ganhador da carreira, O lugar, ao ser criado um parque, seria perfeito para aulas de escalada e também para um ponto de descanso. Fiquei maravilhado com o ponto. É muito bom. Bonito e convidativo. Enquanto vou me perdendo em exclamações, o colega-barbudo dá a sentença sobre a nossa atividade, veterano de escaladas e trilhas que é:

– Quem não vai, não vê!

Por isso estamos aqui: para ver e registrar. Este local é perfeito para uma estação de treinamento de rappel. Fica no meio da subida, de acesso fácil. Vamos adiante. Não consigo parar de me impressionar com as árvores. São maravilhosas, apaixonantes estruturas que se lançam nos peraus em contorcionismos em busca de mais luz. Toco nelas. Sinto suas cascas. Surpreendo-me com a quantidade de tonalidades de verde que vão do quase amarelo transparente ao verde-escuro dos buracos fundos e quase sem luz. Me perco em devaneios e fico para trás. Longe vai o grupo. Escuto suas vozes e sei que chegaram ao topo. Me faltam ainda umas poucas curvas. A vegetação vai rareando e as clareiras aumentam. O sol me racha a face. Tiro o boné e sacudo a cabeça. Os cabelos que me restam estão empapados. Mais uns passos e estarei no topo. Quase não se pensa nada, assim tão próximo do que se busca. A expectativa é tudo. Quando a trilha para de subir, depois de serpentear morro acima, um campo alto de pasto oitavado por árvores se pronuncia. Uma sequência de piques retorcidos e engendrados dão a ideia de uma cerca. Uma porteira vai sendo aberta pelo Paulinho enquanto os outros me esperam. Aqui estamos. No topo do paredão verde. Estou na minha imagem, na minha foto. Levei 23 anos para subir aqui. Agora é hora de aproveitar. Estamos no topo do mundo. No topo do centro do Rio Grande do Sul. Agora é contar porquê eu quis tanto subir até aqui. São muitas histórias que percorrem este verdadeiro jardim dos caminhos que se bifurcam. Vamos a elas.

Sentado no topo do mundo

O que você vê é o que se chamaria na minha infância de um matagal. Matagal era um lugar onde era difícil de passar, não se enxergava o que havia em frente. Sempre havia espinhos, galhos secos e buracos molhados pra tropeçar. Este era o nosso caminho. Uma área com poucas árvores, um pastiçal alto, com muitos matos no que me parecia a borda do morro. Seguimos em direção oeste, para o lado onde o sol se inclina. Não havia nenhuma trilha visível. Paulinho puxava a fila, como sempre. Em muitos lugares o macegal é tão alto que eu enxergava apenas o Bita, que ia um pouco a minha frente.

Aqui, seguimos no platô do topo dos morros pelas trilhas dos passos das vacas em um estreito caminho, um valo pisoteado. Mas as vacas precisam de um espaço diminuto para colocarem os cascos bipartidos. Aqui, nesta trilha de vaca, vou fechando a fila, cansado, com um bloco no bolso, uma câmera na mão, um corpo suado, os pés pesados e um desejo de não parar de prosseguir.

O sol era inclemente. Parávamos apenas para tomar uns goles de água. Aí o grupo se reunia. De quando em quando o mato fechava e tínhamos sombra e frescor. Quando voltávamos ao campo aberto, o calor sufocava. Seguimos até uma beirada de morro para observar o vale do Vacacaí-Mirim lá embaixo. Fiquei olhando, tão abobado que quase esqueço de filmar. Revesar a filmagem com as anotações me incomodava um pouco. Preferia o conforto do meu bloco, minha bic e os meus garranchos, velhos conhecidos. Mas agora ainda me esforçava em fazer panorâmicas, zoons, tomadas e depoimentos sem tripé nem microfone. Só na mão grande. Daquela beirada, a vista era magnífica. Dava para reconhecer lugares por onde havíamos passado no dia anterior. A cancha de bocha com buteco. As pequenas propriedades de cultivo e as cada vez mais numerosas chácaras de descanso para fins de semana.

Descida da travessia dos morros. Achar o caminho certo foi difícil, mas a vista compensou

Em uma síntese visual temos: o vale do rio, com estradas, linhas de transmissão de energia, casas, plantações e matos. As encostas do morro, com cobertura vegetal de floresta e as nascentes dos afluentes do Vacacaí-Mirim. E o topo dos morros. Do lado de Santa Maria, uma grande área foi adquirida pela prefeitura. Do lado de Itaara, a exploração de lavouras divide com as inúmeras chácaras de veraneio. No todo, esta parte da bacia hidrográfica tem 70% de cobertura vegetal. Mas o homem constrói e destrói. Em uma das paradas para descanso, dou de cara com uma planta exótica. Árvore de latas de cerveja penduradas nos galhos por barbantes.

– Olha ali, um pé de cerveja!

– Mas já tão passadas, tão todas vazias, hehehe!

– Aqui deve ser um ponto do pessoal que faz trilha, né.

– Dá mais ou menos o meio do caminho, logo ali dá para ver a cachoeira, a do Assis Brasil.

Seguimos mais uns metros. Em uma encosta mais limpa de vegetação, à minha direita dá para ver o paredão dos morros do outro lado. Neste ponto o vale começa a se estreitar. Vou com a atenção fixa, procurando algo distinto no verde. Logo meu olhar é chamado para o afloramento branco de arenito que surge entre os verdes. E ali, fazendo seu movimento tocado pelo vento, a água se precipita por 70 metros no desfiladeiro. Parece desta distância uma cascata de brinquedo, mas a imponência dos morros e o tamanho diminuto das árvores dão certeza de sua grandeza. Fixo o meu olhar. Ali, naquela cascata, é o começo do Vale que vai se abrindo aos poucos e vai se encerrar depois do lago do DNOs, de onde o Vacacaí-Mirim parte, combalido com a cruzada pela cidade, para buscar os caminhos até o Jacuí.

Em nossa sinuosa caminhada, vamos batendo de borda em borda. O topo dos morros é um labirinto para meus olhos destreinados, mas, ao mesmo tempo, são como avenidas para Paulinho e Alessandrinho. Eles se orientam pelo nível do terreno e as vegetações. Paulinho me bota pilha.

– Tu vais ver, Cadré. Agora tem um mirante onde se vê toda a cidade. É logo ali.

Logo ali é uma unidade de medida imprecisa. Vou, para variar, ficando para trás. Desta vez até o Charles e o Bita desaparecem. Fico filmando uma árvore isolado na beira de um mato mais fechado. Em sua forquilha uma nuvem de insetos. Aproximo o zoom e me alerto: abelhas. Bem na direção que os guris foram. Bom, então vamos lá. Já quase não escuto os gritos do Bita. Vou na direção da árvore com cautela, pronto para disparar. Sinto a direção do vento, mas é muito fraco. Vou chegando mais perto e vejo que as abelhas não deixam seu tronco. Passo rápido, e quase correndo enxergo os colegas se refestelando em pedras, à sombra. Quando encontro-os sou sacudido pelo impacto do abismo.

CONHEÇO CADA CANTO DE TI, CIDADE. JÁ TE ATRAVESSEI A PÉ NOS QUATRO SENTIDOS. AGORA TE SINTO MINÚSCULA, COMO UMA MARAVILHA QUE ENCANTA UMA CRIANÇA.

À minha frente o infinito pampa. Estamos no morro do Carmo. A cidade, cercada de campo. Os morros testemunho à esquerda e o morro das Antenas à direita. E bem à minha frente o centro de Santa Maria da Boca do Monte. Me acomodo em uma rocha e me sento a contemplar a vastidão. Daqui de cima, a cidade parece pequena, pois é possível enxergar todos os seus limites. Estou bem no ponto em que imaginei estar pelos 30 anos que fiquei namorando a silhueta verde da donzela. Conheço cada canto de ti, cidade. Já te atravessei a pé nos quatro sentidos. Agora te sinto minúscula, como uma maravilha que encanta uma criança. Meu silêncio é pesado. Simbólico. Cheio de significados e tempos. Momentos do passado se embaralham com expectativas do presente. Aqui meus caminhos se bifurcam. Estou dentro do meu próprio quadro. Virei paisagem para quem me olha e não me vê. Vou afinando o olhar, acostumando com a claridade cinza. Procuro um comprido prédio, com uma peculiar caixa de água. Vou filmando com os olhos, pelas ruas, marcando pontos. Achei. Lá está ele. Vou correndo a vista pelas janelas do quarto e último andar. Achei-a. Foi dali que eu vim. Meu quadrado, minha cápsula. Estou, pela primeira vez na minha própria vista. Andei até meu sonho.

Olhando a cidade daqui vejo que seus prédios são até mais coloridos do que eu imaginava. Só falta o verde.

Mirante natural mostra Santa Maria vista de cima dos morros. Cartão postal que poucos viram

A estrada imperial

Os cinco estavam deitados no chão.

– Cinco minutos de descanso – sentencia Paulinho.

Desabamos aos poucos em uma área sombreada, bem fechada. São 15 h e 40 minutos, anoto no bloco úmido e amarrotado. A caminhada começou, de fato às 11 horas. Saímos da área suburbana, subimos a trilha nos pés dos morros, avistamos o trem, subimos o caminho sinuoso da encosta, subimos, subimos até o começo do verde mais fechado, que é marcado pelo início do barulho dos pássaros, dos fios de água e nascentes que descem das pedras, dos peraus íngremes que espiamos pelas frestas, das árvores imensas e suas copas coloridas, do amarelo ao vermelho das flores e da chegada ao topo. Daí, mais um longo caminho em marcha acelerada pelo topo em direção ao oeste, tendo ao longe o famoso morro das Antenas. E agora, quase cinco horas depois, o fim da trilha.

– Daqui a gente vai começar a descer. Tu podes ver que para diante daquela cerca a estrada vai melhorar um pouco e, depois, vão aparecendo as primeiras casas. Então vamos parar por aqui – me explica Paulinho.

Ficamos os cinco estrebuchados no chão, na horizontal. A água que levávamos acabou. Mas estar deitado já alivia. Coloco meus pés em uma árvore, no tronco coberto de musgos. Alívio imediato. Conversamos um pouco e depois se faz um raro momento de silêncio. Fico de papo com a árvore, filmando sua copa, achando raios de luz que não estourassem a exposição. Filmo o tronco de baixo até a copa, giro a câmera e focalizo o bando caído no chão. Não tenho a mínima ideia de onde estou. Nenhum ponto de referência. Nada de comida nem de água. Mas ficaria deitado ali eternamente. A fadiga começa a mostrar suas dores. Alguém grita: vamos lá.

Nas proximidades do Morro da Antena, o fim do trecho de ida.

Agora vai ser fácil, penso eu, já mentalizando o caminho de volta, lembrando de uns pontos onde fizemos paradas. Esforço inútil.

– Vamos voltar pelo outro lado, Cadré. A gente vai descer pela estrada imperial e sair lá pro lado do Itararé. Uma banda muito legal.

Então é isso. Lá vamos nós de novo. Caminho de vaca, charco, matagal, várzea, algumas áreas com vegetação mais fechada. De longe escutamos gritos. O grupo paralisa. Ficamos quietos. São berros, não palavras que se aproximam.

– Isso é grito de gente recolhendo gado – arrisco.

– Sim, aquelas vacas que olhamos na ida – comenta Bita – agora já tá na hora de recolher, por causa dos roubos.

Dou uma olhada no entorno. A luz é de fim de tarde. O calor é mais fraco. Mas não enxergo nenhuma borda de morro. O Paulinho puxa o bando, vamos indo. Meio a esmo. Nas lembranças de mapas mentais que eles tinham de outras caminhadas. Os gritos para as vacas vão escasseando. Encontramos uma cerca, com uma porteira fechada. Os guris ficam discutindo se seria aquele o caminho. Decidem seguir mais em frente. Vamos por um campo que nos leva a beira de um perau. Caminho errado. Eles ficam falando de onde daria, se dá para descer, de que pode ter um paredão no meio, e aí só escalando. Sem chance. Retornamos. Mais uma meia hora de volta até aquela porteira. Ali, do outro lado do arame farpado uma bifurcação. Direita ou esquerda. Ninguém sabe. Paulinho diz que vai espiar. Some no mato para o lado mais fechado. Ele se orienta pelo relevo e pelos níveis. Na maioria das vezes dá certo. Agora tem de dar, pois o dia vai se acabando. Esperamos um tempo. Depois ouvimos o berro:

– É por aqui.

A voz é do Paulinho, só não sei onde é o por aqui. Alessandrinho se levanta e parte berrando atrás. Charles começa a gritar:

– Miiiiiiiiico! Bugiles. Miiiico! Bugiles – e desaparece o fotógrafo berrando os outros muitos apelidos que dá para os amigos.

Vamos eu e o Bita. Não há trilha nem caminho. É mato mesmo, com algumas clareiras. Não se vê quase nada, não mais do que uns dois metros. Muitos espinhos unhas de gato. Parece que seguimos a umidade. Mas não sei. Não vejo ninguém, só escuto os gritos do Charles.

– Miiiiiiico! Miiiiiiico!

Gritamos de volta para que nos esperem. Mas o Mico é turbinado. Quando já tava bufando saio de uma moita e vejo o quarteto me esperando. Paulinho vai me explicando que não sabe onde vai sair, mas que estamos descendo. O único perigo é ter um paredão. Ai tem de voltar e ficar a noite no mato. A sede aperta. O caminho melhora, surgem umas trilhas de vaca.

– Se as vacas vão, nós vamos – se enfeza Alessandrinho e se joga no banhado raso, cheio de gravatás.

Vamos indo aos trancos e barrancos. Mas estava errado de novo. Chegamos a um ponto sem descida. Volta tudo. Retornamos à porteira e pegamos o outro caminho. Era à esquerda. Pegamos o rumo, o caminho era em descida, com árvores caídas, mas um caminho. Era encoberto, o que aliviava o calor mas não a sede. Íamos conversando, mais confiantes do rumo porém ainda sestrosos. Não dava mais tempo pra retornar, ainda mais que descíamos rapidamente.

MAS ESTAVA ERRADO DE NOVO. CHEGAMOS A UM PONTO SEM DESCIDA. VOLTA TUDO.

Até que, em um pedaço aberto, com terra revolvida, embaixo de uns gravatás a água jorrava forte de uma nascente. Foi a festa. Muitos copos (sim, alguém tinha guardado um copo, não lembro quem) foram retirados por Alessandrinho em uma arriscada ginástica de contorcionismo, para beber e jogar na cabeça. Renovação. Ninguém sentou. Foi só a festa da água, boa, fresca, fria, limpa, saborosa, revigorante.

– Agora zerei – dispara Charles.

– É perfeito, disse Alessandrinho – tô novo.

Agora é só descer…

Cascata na parte alta do Rio Vacacai Mirim, na Reserva da Biosfera, em Itaara

É impressionante como o corpo se revigora. Saímos da nascente, revigorados. Água é o combustível da vida do homem. E o homem foi feito para caminhar, da mesma forma que cavalos galopam. Sempre ficava abestalhado com histórias de exploradores que caminhavam continentes inteiros. Era fantastique. Mas aqui na vida real temos apenas um morro para descer. A trilha é muito bonita. Há, agora, um caminho bem definido, na largura de uma carroça. Não é mais só trilha de vaca alpinista. Claro, a vegetação está crescida em alguns pontos, existem galhos e troncos caídos há muitos anos. Mas é uma estrada de morro, uma típica estrada esquecida que vai contornando os morros, com curvas acentuadas e retas em declive. Os passos agora são leves. Temos de cuidar os escorregões, pois a chão é úmido e tem muitos cascalhos soltos. Agradeço estar com minhas botinas. Elas são meus pneus de trilha. Me evitam dois tombos. Lá pelas tantas, ouço o Paulinho gritar:

– Tem uma coisa aqui, parece um muro de pedra.

– Vamos lá, diz Charles que ia fotografando.

– Não é um muro, é uma ponte de pedra – completa Alessandrinho que se espichava para olhar para baixo.

– Então estamos na estrada mesmo – diz Bita.

– Isso é bem velho – arrisca Paulinho.

Cercas de pedra da antiga leitaria dos Link.

Vou apagando algumas imagens que não estavam boas para ter espaço no cartão de memória para aquele achado. Charles se dependura e fotografa a ponte. Bem na curva da estrada, é uma estrutura de pedra cortada que faz a contenção do barranco e segura o caminho onde nas enxurradas deve descer muita água. Ficamos por ali fazendo imagens e os outros se vão. Quando o Charles acaba, também pega o caminho. Eu resolvo sentar um pouco e pegar o bloco para anotar. Mas percebo que não é uma boa parar. Tem de aproveitar o corpo embalado para continuar a caminhada. Na verdade não faço a menor ideia o quanto ainda temos de andar. Vou indo. Já não vejo ninguém. Mas estar sozinho me é muito agradável. Escuto as vozes e me basta. Vou indo, devagar, descendo, pensando repensando o que estou fazendo. Começo a pensar tão alto que logo estou falando comigo mesmo.

– Cara, tu conseguiu. Todo mundo dizia que tu não aguentava, mas tu aguentou. Passamos o morro, foi foda, mas foi. E agora, isto vai ficar pra sempre na minha cabeça. Diego e Anay, Elena e Luiza, eu consegui. Dea, valeu. Estas árvores, estes morros, estas pedras não são mais um quadro no horizonte. Caminho no meu sonho.

Quando as lágrimas iam começar a escorrer percebo que o Bita me espera em uma porteira, para ajudar a cruzar o arame farpado. Do outro lado, acabou a caminhada. Foram em torno de 15 quilômetros, das 11 horas da manhã às 18 horas da tarde. Adentramos em Santa Maria. Do outro lado do morro. Chegamos diferentes a um lugar diferente. A enorme casa italiana e suas cercas de pedra ainda são do passado. Aqui não é presente. Estamos no sem tempo.

“EM PUREZA FUI SONHAR”

Viaduto da garganta do diabo, no fundo do vale do Vacacaí-Mirim

Parado embaixo da Timbaúva

Tá bem. Você sabe que em Santa Maria é quente. Mas estamos no começo da primavera, dia primeiro de outubro. Mas o calor é forte. Minha camiseta preta atrai calor. Mas quem é reporteiro da Agência Da Hora não afrouxa o topete. Aí fomos para o sol. Um até tirou a camisa. E seguimos caminhando. Nestes momentos o mais importante é caminhar. O Paulinho inventou uma lógica braba. Os lances de paradas eram de sombra em sombra. Ele puxava o bando. Na rabeira, eu e o Charles. Quando a gente chegava na sombra, estavam os outros quatro já refestelados. A gente nem bem entrava na sombrinha e eles diziam: vamos lá. Aí eu chamava para a conversa. Perguntava, indagava, como é isso, como é aquilo e eles acabavam sossegando um pouco. E aí dê-le água. Muita água, não. Mas o que conseguíamos carregar tinha limite. Então era só uma molhada na boca. E deu. De volta ao caminho. Embaixo de uma solitária árvore, uma Timbaúva centenária, testemunha rara da mata de antes da colonização europeia, enxergo quase que toda a microbacia do Rio Vacacaí-Mirim, dos morros que formam a região das nascentes até o lago da barragem do DNOS e o Morro do Cechella. Ali, Alessandrinho abre o verbo instigado pela majestosa árvore:

Equipe da Ponga verifica cobertura vegetal nas encostas dos morros.

– Esta é uma testemunha, sobrevivente de uma cobertura que já foi modificada. Talvez seja uma das poucas que são de antes do desmatamento. É uma bela árvore, que perde quase a totalidade das folhas no inverno e agora está com estas folhas novas, em verdes claros. Uma testemunha.

Entrei imediatamente em devaneio. Gostaria de contar esta história por meio da voz de uma Timbaúva. Imaginar como ela viu todas estas centenas de anos. Não seria difícil. Paro e fico com o olhar fixo no vale… pequenas casas, lavouras, rio, ruas. Apague tudo e deixe o apenas o rio. Coloque muito mais árvores, porém preserve alguns pastos e várzeas. Isso. Agora exclua linhas de transmissão, estradas e viadutos. Estamos quase lá. Agora é só inventar bandos de aves, longas nuvens em forma de funil, sons de mata. Sim, está quase bom. Gire o pescoço como em uma panorâmica felliniana, oscilante em muitos altos e baixos, daquele jeito que ninguém lembra mais. Certo. Estamos prontos para a Timbaúva. Ela já pode contar sua história. Como toda árvore fala de forma suave, em refolhares soprados levemente, breves silvos em um sacudir de finos galhos em brotação. É uma história de dormir, para os pequenos brotos que estão em verde-claro.


“Estão vendo a Figueira Velha logo ali adiante. Sim, aquela grande Figueira Velha que está isolada na ribanceira. Ela era uma árvore nova, confiante, cheia de planos em se erguer em meio à mata fechada. Olhava com olhos meigos de broto, assim como vocês, meus queridos, cheia de vontades. Queria crescer rápido. Mas a nossa vida é lenta, centímetros por ano. Por isso vivemos muito. Nossas raízes têm de ser firmes e finas para conseguir vencer as rochas e chegar à água. Temos de balançar no vento, pois o que não cede, quebra. A figueira crescia lentamente, em meio ao mato cerrado. Só sentia o mundo de planta ao seu redor, os insetos que passeavam em seus ramos e pássaros e pequenos animais que por ali viviam. Ela sonhava em se banhar no sol diretamente, em ficar horas sob os raios luminosos. Sonhava em enfrentar a chuva e o vento. Dizia nem ter medo dos raios que incendiavam vidas de quando em quando. A tudo ela desafiava com seus murmúrios. Queria ser a maior e mais forte. Ser admirada por sua grandeza e força. Queria semear muitos frutos e fortalecer a floresta com sua espécie. Viver seus 300 anos sem oposição. Uma noite de outono o mundo virou. Ela já estava grande, quase abrindo seu espaço nas copas mais altas. A chuva veio forte, uma ventania despavorida seguida de um sopro gelado do sul que encheu os galhos mais altos de muita neve branca e pesada. Os galhos das árvores mais altas, desfolhadas pelo inverno, não aguentaram e muitos se racharam com o peso extra. Ninguém ali sabia explicar tanta neve. No nascer do dia a Figueira recebeu muito sol. Havia uma pequena clareira a sua volta. Muitos galhos no chão. Apenas ela no meio de um descampado. A mancha na floresta e ela no meio. Ficou com medo. Se sentiu só e desamparada. Não era isso que imaginava. Dois dias depois um bando de homens surgiu na clareira e pararam ao lado da figueira. Montaram acampamento e com os galhos no chão fizeram fogo com a brasa que traziam bem guardada. A figueira se engasgou com a fumaça, horrorizada com a queima dos que foram um dia sua família. Os homens caçaram e assaram animais. Comeram as frutas e ergueram abrigos. Não se demoraram muito. Logo foram deixando um fogo mal apagado. O vento, perverso, soprou fagulhas e em poucos momentos um incêndio se armou. A Figueira apavorada achou que sua hora tinha chegado, mas as labaredas apenas chamuscaram suas folhas e trocaram de direção. Ela sentiu a ardência do calor do fogo mas ficou aliviada que as chamas tivessem se dirigido para outro lado. Por mais de uma semana grande parte da encosta foi sendo consumida. Então veio a chuva e o pesadelo se afogou encharcado pelas gotas preciosas. Para a Figueira, chamuscada e enfumaçada foi um alívio. Bom, agora começa a Primavera e logo outros brotos nascerão, pensou. E se parou a contemplar mais o chão, procurando sinais de brotações das muitas sementes que por ali estavam a dormitar no solo. Viu as pequenas mudas romperem o solo, minúsculas e iniciarem sua subida para o céu. Com o terreno limpo, a brotação foi maior e mais rápida. Quando já começava a se sentir acompanhada das pequenas plantas que nasciam, aproveitando o calor e a umidade, um segundo pesadelo se materializou na forma de um enorme rebanho de gado. As vacas esfomeadas vinham comendo tudo pelo chão, magras que estavam, arrancando tudo que fosse verde e pisoteando o resto. A Figueira entrou em choque. Estava condenada a ser uma testemunha isolada de um passado que não mais nasceria. Viu com o passar dos anos que era inútil semear seus frutos, pois pouca chance teriam contra o rebanho insaciável. Já era uma grande árvore. Seus galhos se erguiam firmes em todas as direções ocupando o espaço vazio a sua volta. Mas, pela primeira vez, sentiu que era mortal. Não conseguia gerar vida, logo poderia se acabar. O impasse fez com que perdesse o interesse no mundo a sua volta. Quase não percebeu que a mata ia se enchendo de clareiras. Quando surgiu seu terceiro pesadelo é que ela achou uma solução. Era um fim de tarde quando ouviu o barulho da máquina que soltava fumaça e guinchava alto. Aquilo era algo inimaginável. O medo da solidão se tornou uma descrença na possibilidade de futuro. A Figueira já quase havia parado de pensar e se emocionar com os ventos, águas e raios de sol. Passou a quase não ter flores e recusava-se a ter frutos. Virou uma árvore triste. Seu tronco grosso tinha uma grande forquilha, de onde se dividiam seus principais galhos. Neste miolo muitas cascas e galhos caiam e ficavam por ali. Alguns animais passaram a usar como ninho. Vieram e foram casais de pássaros. Por ali tiveram ovos e colocaram seus filhos no ar. Comiam os frutos raros da Figueira. E assim, como que quase por acaso, uma semente da Figueira se acomodou no fundo da forquilha. E em uma Primavera, a velha e grande Figueira estremeceu. Seu fruto, sua semente, havia despertado e nascia em sua mãe, pronta para seguir com o ciclo infindo da vida”.

Aí está. Mas a jornada tem de continuar. Mais um caminho a seguir.

A NATUREZA E A VIDA
EM ETERNO RENASCER

“EM PROFUNDIDADE
A MINHA ALMA EU ENCONTREI
E ME VI EM MIM”

Vista do lago da barragem do Vacacaí-Mirim, contemplado do bairro Campestre.

Um laboratório de vida ao céu aberto

Poucas cidades têm dentro da sua área uma bacia hidrográfica ainda viva e completa, com nascentes, cascatas, rio, lago e morros, há poucos quilômetros do centro da cidade. O rio Vacacaí-Mirim inicia nas áreas de captação de água dos topos dos morros que criam o Vale abaixo da serra. É como uma muralha de verdes morros, de um lado Itaara, acessada pela Estrada do Perau, passando por um semicírculo até o fundo do vale, demarcado pela cascata Assis Brasil e seguindo no lado santa-mariense até o que hoje se chama de morro da pedreira. Em formato de U, o vale do Vacacaí-Mirim tem um limite criado pelo homem, o lago do DNOS, com o morro do Cechela de um lado e o vale do Viaduto da Garganta do Diabo do outro. Nesta grande área, uma outra cidade, um outro modo de vida sobrevive ao tempo. O lado verde de Santa Maria. O local é, além de um espaço natural diferenciado, um grande laboratório para estudos e pesquisas dos mais variados campos do conhecimento.

A área pode ser estudada por cima, pelo meio e por baixo. Como assim? Apenas a Universidade Federal de Santa Maria tem mais de 40 dissertações e pesquisas de tese que utilizam a bacia do Rio Vacacaí-Mirim e a região no seu entorno como assunto dos estudos. Um dos professores que já orientou muitos trabalhos neste local é o Engenheiro Florestal, Doutor José Salles Mariano da Rocha. Rocha tem conhecimento profundo no manejo de bacias hidrográficas, inclusive já tendo desenvolvido métodos para realizar os zoneamentos ambientais que são o instrumento técnico para dizer o que pode ser feito e o que não pode em uma determinada área. Apesar de ter a preocupação com o ambiente natural como um fator determinante para tocar qualquer empreendimento, Rocha não pode ser chamado de radical. Para ele, o homem também é parte do ambiente. E o importante é a relação entre os dois.

– Uma vez já estragado, não adianta querer voltar ao passado. Qual o problema maior? Muitas vezes o problema ambiental, em função da sobrevivência do social, ele fica em segundo plano. E, para propor soluções, na força ou na compreensão sai igual.

Para a região do Rio Vacacaí-Mirim, que tem uma grande área preservada, mais de 60% de cobertura vegetal de floresta, o professor Rocha tem a receita passo a passo de como estudar a área e definir o que pode e o que não pode ser feito.

– O caminho é delimitar a área e caracterizar a área como APA do Rio Vacacaí-Mirim, de suas nascentes até a barragem do DNOS. Caracterizada a APA, vem o zoneamento ambiental da APA. Feito o zoneamento, já se sabe o que pode ser feito em cada área. Ai vem o manejo da bacia, daquela bacia, das nascentes até a barragem. E ai, por fim, temos os diagnósticos: da vegetação, do solo, para fins conservacionistas, para fins socioeconômicos, ambientais. Estes diagnósticos é que vão dar subsídios para poder decidir o que fazer de concreto naquela bacia hidrográfica. E ai se pode sugerir atividades turísticas, teleférico, trilhas, centro de educação ambiental instalado para trabalhar com as escolas.

Um dos pupilos do professor Rocha é o hoje professor da UFRPE, Paulo Dill, ex-aluno da UFSM, doutor e também Engenheiro Florestal que estudou o aumento do assoreamento da barragem do DNOS. Em seu trabalho, ele provou que a barragem está perdendo capacidade de armazenar água. De 1972 a 1997, a capacidade de armazenamento diminuiu 29,45%. De 1997 até 2001, mais 6,58% de redução. E, dessa época, a situação só piorou. Em seu trabalho o pesquisador atribuiu a urbanização (corte, aterros, ocupação de áreas inadequadas) como principal agente causador do assoreamento. Até hoje pouco ou nada foi feito. Para Dill, a região tem um potencial imenso para ser aproveitado tanto na pesquisa acadêmica quanto na melhoria da qualidade de vida da população de Santa Maria. Apaixonado pelo local, o pesquisador pede uma intervenção do poder público para que a lei ambiental seja cumprida e a região não seja destruída pela especulação imobiliária. Ele exemplifica a questão com o Morro do Cechela.

"ISTO SERIA UM PRESENTE PARA
A POPULAÇÃO DE SANTA MARIA"

Paulo Dill, ex-aluno da UFSM,
doutor e também Engenheiro Florestal.

– É uma grande área, com muito verde, com trilhas a serem implantadas, infraestrutura a ser colocada nas áreas de lazer, com um grande mirante mostrando esta belíssima cidade. Isto seria um presente para a população de Santa Maria. Eu ainda sonho em ver está área transformada em uma unidade de conservação. Um Parque Municipal – conta Dill em um dia nublado e chuvoso quando fomos percorrer o local.

– Em que um parque faz bem para uma cidade – indago?

– É o coração, o pulmão da cidade. Onde as pessoas após um dia de trabalho possam vir no parque, fazer uma trilha, uma caminhada, respirar este ar. Isto faz bem, isto é qualidade de vida para a população de Santa Maria – responde o Engenheiro Florestal antes de sairmos do topo e buscarmos as trilhas que nos levariam a diversos cenários e ocupações humanas no Morro do Cechela.

Esta é uma região exemplar para demonstrar o que acontece se a ocupação de uma área de encosta de morro e margem de rio não for tratada com rigor pelo poder público. Rapidamente, em poucos anos as ocupações ilegais se transformam em cidade e o morro, a vegetação, as nascentes, a fauna e a flora vão se terminando. E como o morro do Cechella margeia o lago do Rio Vacacaí-Mirim, formado pela barragem do DNOS, todo o lixo, terra e esgoto da ocupação vai parar dentro do local que é responsável por 30% da água que os santa-marienses utilizam todos os dias.

Hoje, já existem estudos feitos pela UFSM e outras universidades. Também o Instituto de Planejamento de Santa Maria já desenvolveu a proposta de implantação de parques públicos como forma de assegurar a qualidade de vida, proposta que vem do Plano Diretor da cidade. Resta agora o poder público e a população fazer a sua parte.

Cerração toma conta do alto do Morro do Cechela.

Dentre os 40 trabalhos científicos feitos pela UFSM na região me chamou a atenção um em especial. Em 2011, o engenheiro civil Rodrigo Burin defendeu dissertação de mestrado denominada “Variabilidade da qualidade da água e estado Trófico do reservatório do Vacacaí-Mirim” que verificou entre outras coisas a qualidade da água e os fatores que contribuem para a deterioração do reservatório. Os resultados são preocupantes. Diz Burin em seu trabalho que “o estudo da qualidade da água dos reservatórios é essencial à saúde pública, pois estes corpos d’água suprem necessidades vitais.” Criado em 1972, o lago do DNOS abastece hoje, segundo a Corsan 30% da cidade. E a sua situação é a cada ano mais preocupante. Os poderes públicos, no caso Corsan, IBAMA e prefeitura fazem um jogo de empurra e não atuam de forma conjunta no sentido de proteger o reservatório e a qualidade da água.

Em 2002, Paulo Dill recomendava para reduzir o assoreamento as seguintes ações: preservação das matas existentes, arborização das estradas, respeito à distância mínima de rios e inclinação de morros para agricultura, reposição da mata ciliar, planejamento físico das propriedades rurais, retirada das invasões em áreas de preservação. O que se observa hoje, mais de 10 anos depois, é o despejo contínuo de esgoto doméstico no Rio Vacacaí-Mirim e no lago, a colocação de lixo diretamente nas margens ou barrancos que chegam ao lago e ao rio nas contínuas enxurradas, desmatamento das margens não respeitando a distância legal que deveria ocasionar multa e replantio nas margens, plantio de bosques de árvores exóticas e agricultura com grande uso de venenos nas regiões acima das nascentes, em Itaara principalmente.

Nas encostas do Morro Cechela, invasões e lixo se acumulam.

Este mix de problemas tem autoridades competentes para inibir as práticas, remover habitações de áreas de risco, fazer obra de captação de esgoto, multar e exigir compensação ambiental: São eles Prefeitura de Santa Maria e Itaara, secretarias de gestão ambiental dos dois municípios, Fepam, Ibama, Ministério Público, Patrulha Ambiental da Brigada Militar, Câmara de Vereadores dos dois municípios. Mas não existem hoje iniciativas eficazes de nenhum destes órgãos no sentido de evitar os problemas.

O local

Fonte: Burin, 2011.

Localização

A bacia hidrográfica à montante do reservatório do Vacacaí Mirim está localizada ao norte do município de Santa Maria e sudoeste do município de Itaara, centro do estado do Rio Grande do Sul.

Altitude

Por situar-se mais na porção do rebordo do planalto, o relevo mostra-se bastante dissecado, caracterizado por escarpas abruptas. A drenagem flui no sentido da depressão periférica e é caracterizada por um padrão dendrítico com presença marcante de vales em V.

Solo

A bacia apresenta grande heterogeneidade na distribuição da estrutura rochosa, e os solos presentes são de três tipos diferentes coincidindo parcialmente com a heterogeneidade verificada nas rochas. Basicamente, nas partes mais elevadas predominam solos do tipo podzólico bruno acinzentado álico e podzólico vermelho-escuro álico, e nas partes inferiores há o predomínio de solos litólicos eutróficos (SOUZA, 2001).

Clima

O clima específico da região, de acordo com o sistema de classificação de Köppen, é o sub-tropical “Cfa”. O local é periodicamente invadido por massas polares e frentes frias (frente polar atlântica), responsável pelas baixas temperaturas no inverno e pela regularidade na distribuição das precipitações, com uma média anual superior a 1.500 mm. A região apresenta uma importante oscilação térmica ao longo do ano: geralmente seu inverno é frio e seu verão quente, sendo sujeita a temperaturas extremas abaixo de 0°C no inverno e por volta de 40°C no verão (SOUZA, 2001).

Uso do solo

No que se refere ao uso do solo na bacia de captação do reservatório, a classe de florestas arbustivas e florestas arbóreas representam mais da metade de toda área em estudo (71%), ao passo que o percentual de lâmina d’água alcança 2,38%. Os campos e agricultura representam respectivamente 14,6% e 5,08% do total. As áreas urbanas ocupam aproximadamente 6,79% que, no entanto, vem se desenvolvendo em local inadequado (GOLDANI, 2006).

População

A bacia hidrográfica contribuinte ao reservatório possui em torno de 1400 residências, num total de aproximadamente 3.500 habitantes (Goldani, 2006). O crescimento urbano passou a envolver fisicamente o reservatório, com a população ocupando as suas margens com residências e passando a avançar na direção das encostas dos morros vizinhos. Trata-se de populações de poder aquisitivo relativamente baixo, de periferia, na sua maioria, num bairro gerado espontaneamente por expansão, desprovido de uma infra-instrutura sanitária satisfatória. Numa margem do reservatório também é verificada a existência de um clube de lazer.

Problemas ambientais

Além da destruição da vegetação nativa, outros problemas causados por essa ocupação, consistem na grande quantidade de resíduos depositados em locais inadequados como ao longo dos rios, e nas matas, causando tanto impacto visual quanto impacto ambiental para toda a bacia, trazendo direta ou indiretamente diversos problemas para os moradores. Os sistemas de abastecimento de água, assim como a coleta de esgoto são deficitários. Somente uma pequena parcela das moradias possui algum sistema simplificado de tratamento de seus efluentes, como fossa séptica. Os efluentes são lançados nas proximidades, em canais abertos ou em redes de drenagem urbana que retornam ao lago ou a seu afluente principal.

Fonte: Burin, 2011.

Características morfométricas do reservatório Vacacaí Mirim (Lago ou barragem do DNOS):

• Área de captação: 30,6 Km²

• Vazão Média de entrada de água: 0,5 m³/s

• Volume do reservatório: 3.477.000 m³

• Perímetro do reservatório: 6.400 m

• Profundidade média: 4,7 m

• Profundidade máxima: 15 m

• Lâmina d’água: 0,723 Km²

Fonte: Burin, 2011.

O sistema abastecimento de Santa Maria:

• Duas principais barragens: Val de Serra e DNOS.

• A barragem do DNOS fornece aproximadamente 30% do volume de água aduzida.

• O sistema que engloba a barragem Rodolfo Costa e Silva (Val de Serra) representa 70% do total.

• Consumo de água de Santa Maria: são disponibilizados para o sistema Santa Maria/Camobi aproximadamente 2.000.000 m³/mês de água tratada.

Fonte: Burin, 2011.

Quadro preocupante

O padrão de potabilidade da água para consumo humano em atual vigência no Brasil é representado pela Portaria Número 518/04 do Ministério da Saúde (Brasil, 2004) que também estabelece os procedimentos e responsabilidades relativos ao controle e vigilância da qualidade da água. Esta portaria estabelece os limites de vários parâmetros que afetam a qualidade microbiológica das águas e os limites de algumas substâncias químicas que representam riscos à saúde. Segundo a pesquisa de Barin, a água do Rio Vacacaí-Mirim apresenta vários pontos em que a qualidade da água está acima dos limites do padrão no que se refere a escherichia coli, bactéria que indica a presença de fezes humanas. No lago, esta variação ainda está sujeita às cheias e secas.

Quando das enxurradas, a presença de poluentes aumenta, o mesmo ocorrendo em prolongadas estiagens que diminuem o volume de água do lago. Em outras palavras, a água se torna apta ao consumo pelo tratamento que recebe. Uma situação que só piora, encarecendo o custo da água potável e degradando o sistema natural de produção de água, a bacia hidrográfica. Para que esta reserva ou fábrica de água se mantenha para as gerações do futuro um dos caminhos apontados pelos especialistas é a criação de uma Área de Preservação Ambiental (APA) do Rio Vacacaí-Mirim e produzir um estudo chamado Zoneamento Ambiental.

– É necessário fazer um zoneamento para saber a vocação da terra e definir um plano de manejo da bacia. Hoje, não se sabe o que é o quê. Dá-se uma ocupação aleatória. O governo municipal, nos dois municípios, Santa Maria e Itaara, deveriam fazer a proposição de um decreto-lei caracterizando o zoneamento. Ai, sob força da lei se faz o manejo da bacia, atacando os principais problemas, como ocupação de área indevida, lixo, poluição. E na volta da barragem seria necessário florestar 100 metros – explica o professor José Salles Mariano da Rocha.

Estação de pesquisa na região do Rio Vacacaí-Mirim, abastece os dados de inúmeras pesquisas científicas.

Para Rocha é necessário elaborar este estudo completo, global que ofereça os diversos diagnósticos (solo, água, floresta e social) dos 3,5 mil hectares da microbacia.

– Isto pode ser feito em até 40 dias. É um trabalho técnico. Este estudo custa em torno de R$ 300 mil reais. Se fosse criada uma APA (Área de Proteção Ambiental), a ser encaminhada pelos prefeitos para a Assembleia Legislativa, ao ser aprovada, a APA pode ter dotação orçamentária, e obter recursos estaduais. Soluções existem. Temos todos de buscá-las com sabedoria – aponta Rocha, que sonha em ver na região um centro de educação ambiental que fomente a pesquisa e a educação no local.

As pesquisas existentes, para falar em apenas duas delas, indicam que o reservatório cada vez armazena menos água e de pior qualidade. Apesar dos discursos dos poderes públicos envolvidos, pouco ou nada se faz para mudar esta situação. Pelo contrário, as condições apenas se deterioram e os problemas ambientais se agravam.

Rio Vacacaí-Mirim, antes de chegar na cidade, logo após deixar a região das nascentes.

Veja abaixo o que diz a Superintendência Regional da Corsan

Ponga: Quais as iniciativas para reduzir o impacto de atividades de ocupação do solo (agricultura, criação de animais, indústria, esgoto não tratado, lixo) nas proximidades da bacia do Rio Vacacaí-Mirim?

Resposta: As políticas de gestão das áreas são competência da Prefeitura Municipal. A CORSAN conserva as estruturas das barragens e monitora a qualidade da água, mas não há trabalhos em conjunto com esta finalidade.

P: A criação de parques e o efetivo cumprimento da legislação ambiental na área da bacia do Rio Vacacaí-Mirim auxiliariam na melhoria da qualidade da água que a Corsan capta do Rio Vacacaí-Mirim? Em que medida?

R: A conservação da mata ciliar, vertentes e mananciais contribuintes para a bacia é de fundamental importante para manutenção da qualidade da água das barragens, pois elas são bacias de acumulação. Com uma água “bruta” de melhor qualidade há menos custos no processo de beneficiamento da água para consumo humano e redução de possíveis poluentes, que poderiam intervir no equilíbrio daquele ecossistema.

P: É fato que uma água com qualidade melhor, oriunda de fonte não poluída, tem custo mais baixo no processo de tratamento para consumo humano?

R: Com certeza. Temos registros de cidades que enfrentam o problema de contaminação das águas, onde o custo acresce consideravelmente devido à maior adição de coagulantes e de carvão para remoção de impurezas. Inclusive a empresa tem no seu histórico a modificação de um ponto de captação, na região metropolitana, devido aos custos para o tratamento.

P: A barragem do DNOS mantém o mesmo volume de água ou o assoreamento segue em um ritmo crescente?

R: Nas últimas secas, onde a barragem do DNOS praticamente “esvaziou”, observou-se que o assoreamento é mínimo. Foram feitos ensaios naquele momento e detectado que é desconsideráveis o montante assoreado, em relação ao total da barragem.

P: Como pode ser evitado a ocupação da área de proteção permanente ao redor do lago da barragem do DNOS e como a Corsan pode participar deste processo?

R: A única solução é com o monitoramento efetivo da área pela Prefeitura Municipal e realocação daquelas famílias para locais adequados e seguros. A CORSAN é detentora somente da barragem e não têm nenhuma jurisdição ou poder de fiscalização destas áreas. O que fazemos atualmente é avisar aos departamentos responsáveis o que observamos em nossas visitas de monitoramento.

P: Existe alguma atividade de educação ambiental da população na região das barragens da Corsan em Santa Maria e Itaara? Sim, não, por quê?

R: Os programas de educação ambiental da empresa são principalmente voltados a estudantes, do primeiro ao terceiro grau, nos municípios abrangidos pela Corsan.

“EM RIGOR EU ME ENTREGUEI
AOS CAMINHOS MAIS SUTIS”

Lago da barragem do Vacacai-Mirim, água azul e natureza verde

A chave do morro do Cechella

Um fragmento de morro à beira do Rio Vacacaí-Mirim. Muro verde de granito. Os dois lados da mesma moeda. Espelho que reflete as almas voantes de Santa Maria. A cidade nela mesma, em seu negativo de matos antepassados, águas e árvores, pedras e trilhas que levam até mirantes, minaretes de fé no futuro. É quase impossível não vê-los… estão em nossos olhos por tanto tempo que fazem parte do cotidiano de quem vive na terra santa-mariense. Desde sempre. Ali parou o índio minuano, o gaúcho campeiro, o português e o castelhano. Parou o negro, parou o branco, parou o pardo, o amarelo e o cinzento. Tem espaço para todas as cores da humanidade no impávido enclave de identidade coletiva de quem tem como querência o ir e vir para a cidade de Santa Maria. O morro do Cechela é um patrimônio intangível, histórico e cultural da cidade. Pertence a todos que aqui se aquerenciam. Já foi caminho de mula, de trem, de tudo.

"A CIDADE NELA MESMA, EM SEU NEGATIVO DE MATOS ANTEPASSADOS, ÁGUAS E ÁRVORES, PEDRAS E TRILHAS QUE LEVAM ATÉ MIRANTES, MINARETES DE FÉ NO FUTURO."

Hoje, está virando cidade. Equilibram-se em seus costados, quase chinchando-o pelo meio da barriga, uma sucessão de casebres e modestas moradas, onde habita a precariedade e a falta de serviços públicos básicos e elementares, como água e esgoto encanado, recolhimento de lixo, energia elétrica, serviços de saúde e educação ambiental. O aumento das invasões é visível a olho nu por qualquer pessoa que margear o lago artificial da barragem do DNOS, nome antigo do lago criado pelo barramento do Rio Vacacaí-Mírim ( ).

Lago e morro hoje são irmãos. Para uma antiga moradora, Cristina Bitencourt Ribeiro, 46 anos, viver por ali significa apenas uma coisa:

Há anos ela trabalha de forma voluntária para dar um futuro para a juventude da região. Se há um lago, seus alunos vão aprender a remar. É um trabalho diário, com tudo que é verdadeiro na vida. Na estrada de terra que leva ao acesso ao lago, um grupo de 12 alunos vem puxando os barcos em um carrinho, carregando remos, coletes, bonés e mochilas. São todos moradores do Bairro Campestre do Menino Deus. Quando o Rio Vacacaí-Mirim se enfurece nas enxurradas e ganha os campos e ruas pois não tem mais árvores em suas margens, são os barcos da Associação Santa Mariense de Esportes Náuticos que prestam auxílio aos moradores. É daquelas pessoas que não desistem. Mãe dos irmãos remadores, Gilvan e Givago, que já ganharam competições estaduais e nacionais de remo, ela apenas reclama de que poderia ter mais ajuda dos poderes públicos.

Remador pratica canoagem no lago da barragem, potencial de formação de jovens atletas.

– Com mais recursos, seriam mais crianças no esporte. Aqui todo mundo nos ajuda. A gente faz rifa, as famílias colaboram, mas falta muita coisa. A gente não tem creche, não tem rede de esgoto, não tem posto de saúde. Só tem uma escola. E precisávamos uma área de lazer de verdade. Aqui, se não fosse o remo não tinha nada para a gurizada fazer. Mas a gente atende poucos – conta Cristina.

Do outro lado do lago, ao lado de um belo sobrado branco, paramos para fazer fotos do pessoal da canoagem no lago. A casa era do músico Beto Pires ( ), que logo aparece para uma rápida conversa sobre como é viver naquela paisagem.

– Aqui é melhor que lá na cidade. É uma beleza. Mas precisaria dar mais educação, educação ambiental para quem mora por aqui. Hoje, não tem mais nem peixe ali no lago. E quando dá enchente, as enxurradas levam tudo para o lago, inclusive coisas daquele cemitério que fica ali na colina – aponta, direcionando o braço para um ponto do outro lado do lago.

O músico também se diz preocupado com o avanço das ocupações por toda a região, em pontos em que não deveriam receber moradias.

– São áreas de proteção permanente – contribui Paulinho – ali não é para construir nada. Tem é de recuperar a mata.

– É, só que por ali vai crescendo livre. Há cada ano tem mais – testemunha Beto, morador há muitos anos do bairro.

Se hoje o problema é grande, com 246 mil habitantes na cidade, imagina em 2020, com 344.105 mil ou em 2030, beirando os 446.679 ao ser usado o modelo geométrico de crescimento do IBGE. Para onde crescerá Santa Maria? No ritmo atual de ocupação caótica do espaço urbano, o cenário que se avizinha é complicado. A especulação imobiliária é crescente. O IBGE aponta que existem mais de 20 mil domicílios não ocupados e vagos. Dentro da cidade há uma cidade vazia.

Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgado em 2013, a população do Brasil deverá se estabilizar em 2030. Assim, se faz necessário inverter a lógica de expansão territorial das cidades e investir os recursos públicos nas melhorias dos serviços nas áreas tradicionais, fazendo o melhoramento e manutenção da infraestrutura existente.

As áreas que crescem populacionalmente são os espaços vazios no Leste (Camobi) e Oeste (Santa Marta). Á grosso modo, para o lado Leste a UFSM atrai moradores de maior poder aquisitivo e, no lado Oeste, concentra-se parte de população de renda menor. Porém, aqueles destituídos de renda tem na ocupação de áreas irregulares uma das poucas possibilidades de conseguir moradia. E acabam assim rumando para regiões que não deveriam ser habitadas, protegidas por lei, porém sem fiscalização eficiente: margens dos rios e arroios e encostas de morros ( ). Em Santa Maria, mesmo usando o PIB (valor adicionado, IBGE), se vê claramente que não há justificativa para que os investimentos públicos não privilegiem o setor de serviços, onde a existência dos Parques públicos contribuiria para o setor da economia que gera mais renda do que a agropecuária e a indústria:

PIB de Santa Maria por setor
Serviços Indústria Agropecuária
3.314.676 594.929 99.204

Indago a mim mesmo se alguma destas mais de 240 mil pessoas que vivem neste município, concordaria que, no reservatório da água que elas beberão, sejam depositados diariamente lixo, esgoto, terra de erosão, resíduos de produtos químicos e muitas outras substâncias livremente encaminhadas ao curso de água por uma série de fatores. Primeiro, há falta ou ausência de fiscalização pública para impedir que resíduos de atividades humanas sejam jogadas no rio. Segundo, a Corsan, responsável pelo abastecimento público prefere tratar quimicamente a água para torná-la mais potável do que combater o que causa sua má qualidade. Terceiro, os moradores da bacia hidrográfica não recebem uma educação ambiental nem dispõem de serviços públicos de qualidade para que exerçam sua cidadania de forma plena. Quarto, poucos moradores da cidade têm conhecimento das reais condições do rio e menos ainda são incentivados a trabalhar pela melhoria destas condições.

É o que está acontecendo com o Rio Vacacaí-Mirim. E a região do entorno do Morro Cechela é emblemática desta situação, muito embora não seja a única área problemática. Longe disso. Os problemas ambientais do que se chama genericamente de poluição se repetem em todo o bairro do Campestre do Menino Deus e arredores. E o problema é mais do que uma constatação física. Da série de reportagens feitas 10 anos atrás, estas localidades já eram as que apresentavam mais problemas. Hoje a situação se agravou. E, em muitos aspectos, piorou. Há um sentimento de descrença e preconceito com tudo que está do outro lado dos trilhos do trem. É como uma cidade partida. Porém, o lado mais belo, mais rico e mais importante para a qualidade de vida está na região do rio e dos morros que o abrigam em vale. Enquanto a maioria da população se empoleira no centro, bairros e vilas em condições de habitação precárias e que fomentam maiores dificuldades para a convivência pública e distribuição de serviços públicos de forma igualitária para os moradores, do lado de lá do morro, um manancial de possibilidades outras aguardam projetos e vontade política de mudar Santa Maria para um nível mais justo de qualidade de vida.

O Morro do Cechela é metade mato, metade vila. É hoje coberto por vegetação na maioria de suas encostas e grande parte do topo.

O caminho principal começa ao cruzar os trilhos. É possível chegar de carro até o cume, bastando um automóvel de bom motor e um motorista acostumado com subidas íngremes e pedras soltas. Mas a trilha é suave e propicia um tranquilo passeio. Em menos de meia hora se chega ao topo. O Cechela tem muitas trilhas que formam uma teia, descendo do alto por suas quatro faces. Para o lado do lago, chega-se à invasão mais recente. Para o lado contrário, da cidade, chega-se aos trilhos. Nas duas faces menores, leste e oeste, áreas habitadas, vilas de mais de 50 anos hoje sacramentadas como cidade. Um local perfeito para um parque público para os moradores que não possuem nem água, nem esgoto. E para os que estão do outro lado dos trilhos e já contam com a infraestrutura básica de serviços públicos, porém são carentes em espaços verdes. Já se pensou em usar o local para fazer condomínios de luxo a serem construídos em seu topo, mas a ideia não prosperou por encontrar obstáculos na legislação ambiental e no Plano Diretor.


Topo do morro do Cechela, local que poderia abrigar um espaço esportivo e cultural para a população

Na janela de sua casa azul, espremida entre o barranco do morro e o lago da barragem, a senhora olha pela janela o grupo de estranhos que caminha na rua enlameada.

Moradora há mais de 30 anos na Vila Nossa Senhora Aparecida pede melhores serviços públicos, como água e esgoto encanado

– Bom dia! – disparo.

– O que deseja – retruca a senhora.

– A gente está querendo saber dos moradores como é viver aqui na volta do lago, no pé do morro?

– São da prefeitura? indaga, sestrosa.

– Não. É uma reportagem. De que a senhora sente falta aqui?

– Por aqui tem muitos problemas. A água é tudo gato que vem lá da frente. O pessoal vai puxando cano. Ai falta muita água. E não é boa não.

– Tem esgoto na sua casa?

– Não temos não.

– E a luz elétrica?

– Agora tá melhor. Arrumaram os postes. Mas toda hora falta. Assim do nada falta. E demora a voltar.

– A senhora mora há muito tempo aqui?

– Uns 30 anos. Conheço isto aqui quando quase não tinha casa. Agora tá assim – responde ela, fazendo um gesto com as mãos para mostrar o tamanho da ocupação – E, a cada dia, tem uma casa nova – conta arregalando os olhos escuros na face enrugada.

– Recolhem lixo por aqui?

– Só até lá na frente que é até onde vai o ônibus. Aqui não entram. E ai o pessoal vai empilhando nos terrenos baldios. Ai, acaba, na enxurrada indo pro lago lá embaixo.

– E a senhora gosta de morar aqui?

– Olha meu filho, eu já me criei por aqui. É calmo e eu conheço todo mundo. Aqui me respeitam, sabem quem eu sou. Então, para onde que eu poderia ir?

– A senhora poderia me dizer o seu nome?

– Prefiro que não. Depois posso me incomodar.

– Incomodar com quem?

– Olha, não vou te contar, pode escrever. Então eu fico só de longe. Não me misturo. Ai não me incomodam, entendeu.

– Sim, um bom dia para a senhora.

– Bom dia!

"PARA ONDE QUE EU PODERIA IR?"
Moradora há mais de 30 anos na Vila Nossa Senhora Aparecida


Seguimos pela rua. As casas ainda estão silenciosas. Há pouco parou de chover. Viemos cruzando as trilhas do Cechela, do lado dos trilhos até a beira do lago. Em cada canto, cada vez mais casas sendo construídas. Percebe-se pela madeira nova das tábuas e as brasilites dos telhados. Só um guri e outro que olham com espanto para aquele bando de gente esquisita, molhados, carregando bolsas e máquinas. Chegamos na beira do lago. Na outra margem se distingue o desativado clube, uma bela paisagem. Quase ao lado do lago uns canos e uma bomba de água no chão, embaixo de vegetação rasteira, mostra parte dos encanamentos que vão para as casas. Impossível saber se é da Corsan ou não. Não há identificação. Vamos nos aproximando de outra casa, onde no pátio um senhor com cara de quem há pouco acordou remexe num galpão atulhado de coisas.

– Bom dia! Tudo bem? O senhor mora há muito tempo por aqui.

– Sim, desde pequeno. Para o que é?

– Estamos fazendo uma reportagem e queria saber o que precisa por aqui, o que está faltando?

– Olha por aqui é muito bom, tranquilo.

– É difícil sair se tem uma emergência?

– Não, é fácil. Logo ali tem rua calçada e a gente chega rápido onde precisa, de carro mesmo.

– Tem esgoto?

– Aqui não tem não.

– É bom morar perto do lago, do mato?

– Eu gosto. Não saio daqui, não. Também, aonde que a gente ia morar? Agora tenho de arrumar umas coisas tá.

E ela se some em direção ao fundo do galpão. Ficam só os cachorros fazendo arruaças. Bom, vamos adiante. Fazemos toda a volta para leste do morro do Cechela, passamos pela barragem, chegamos aos trilhos que vão costeando novamente o morro e dividindo a área verde da área mais urbanizada. Colado nos trilhos mais casebres. Muito lixo pelos campos que recebem cavalos dos carroceiros. Voltamos ao carro deixado lá no começo da subida. Subimos o morro, fomos aos mirantes do topo, percorremos o grande espaço aberto em seu cume e descemos a encosta para o lago.


Ruas de chão batido vão serpenteando nas encostas desmatadas

– Este lugar tem toda a vocação para ser um parque público. É só melhorar a infraestrutura que seria uma ótima opção para a cidade – diz Paulo Dill, entusiasmado com a ideia.

Seguimos para o outro lado, pela rua dos Canários, ocupação antiga que já tem cara de cidade.

– Os trilhos antes faziam a volta pelo morro, por isso que sempre tiveram caminhos aqui por baixo – me conta Alessandrinho.

Dali se tem uma bonita vista do lago à direita e do monumento do ferroviário com a pedreira bem a frente. Pode se perceber visualmente como a ocupação dos terrenos cresce sobre os morros e em direção ao rio. As casas de alvenaria se intercalam com as de madeira. Logo acaba o calçamento. De volta para o barro. Ficamos conversando. O assunto é o crescimento desordenado e a ocupação de áreas inadequadas para pessoas, como encostas e margens de rios. Os colegas de trabalho, três engenheiros florestais, com mestrado e doutorado em aspectos distintos desta questão complexa, a ocupação do homem urbano no espaço natural, discutem, divergem, opinam, avaliam e sugerem abordagens. Vou escutando enquanto filmo umas panorâmicas, pegando carona no posicionamento do fotógrafo. Vou dando zoons nos morros mais longe e retornando com a imagem para a barranca abaixo de nós. Dali, todo o bairro do Campestre do Menino Deus é bem avistado, com o lago de um lado e a região das nascentes do Vacacaí-Mirim do outro. Nas bordas, os morros, de um lado marcado pelo monumento do ferroviário e a pedreira e do outro pela estrada do perau e uma rede de linhas de transmissão de energia de alta-tensão.


Monumento do Ferroviário e casas ganhando os morros.

Nisso, minha atenção é chamada para um homem que sem camisa serra tábuas em um compartimento pequeno, circundado por duas crianças também sem camisas que gravitam ao seu lado. Estão próximos de nós. O homem ergue uma casa em uma fina platibanda bem ao lado da encosta. Existem telhas, tábuas e ferramentas a sua volta. Baixo a câmera para ver com meus olhos. O local não tem mais de dois metros de largura. Não dá para ver aonde eles se apoiam, mas estão bem à beira da rua. O homem me olha, mas não se interessa muito por nós. Segue na sua labuta. Mais uma casa está saindo. Lembro do terreno demarcado por pedras e cascalhos que encontramos em outra encosta de morro, capinado, demarcando onde sairia outro barraco minúsculo de 2 m por 3 metros medidos a passo. E uns quantos outros que encontramos por todo tempo de uma semana que usamos para produzir parte desta reportagem.

As duas crianças brincando nas poças, no sol que começa a abrir em meio ao céu nublado são o futuro. Imprevisíveis. Carentes de cuidados. Alegres com coisas simples. O homem é o presente, preocupado com sua sorte e seu trabalho. E foi o passado que os colocou aqui e a mim também nestas rebordas de morros, cortadas por trilhos e rios.

“CONCISÃO TEM PÁTIOS PEQUENOS
ONDE O UNIVERSO EU VI”

A pedreira Link ecoa a voz grave e pesada do abandono. Conversa lentamente com duas enormes peças de ferro fundido que ficaram esquecidas pelo grande descampado. As peças são de ferro tão forte que vence a ferrugem. Pelo menos por hora. Estão ali há pelo menos 50 anos. O morro, fendido, esburacado, partido, sugado, repete em uma modorrenta ladainha de calor a mesma frase monótona, quase inteligível, a cada vez que o trem passa ao seu largo e o barulho da máquina retumba no paredão: porquê, porquê, porquê!

As peças de ferro não têm a resposta. Pelos seus orifícios, o vento insinua maledicências com sua voz fina e sibilante. Fala a língua das cobras. “Suas pedras primeiro fizeram casas. Depois, as bases dos prédios. Em seguida, foram moídas para sustentar o caminho interminável do trem. Foram espalhadas pelas estradas que tentavam vencer os paredões dos morros no tempo das tropas de mulas onde escoravam barrancos e seguravam pontes. Se ali ao lado está uma cidade é porque entregaste a eles tuas pedras. Para ti foi um ganho, pois sais da imobilidade e crias o mundo dos homens.” O trem se afasta, deixando o rastro sonoro da minhoca de metal: “Fui eu, fui eu, fui euuuuuu”.

Cascata e seu véu de águas, um momento de poesia natural.

Os trilhos do trem e o monumento do fim do mundo

Ele pode ser visto de todos os lados. Da Rua dos Canários, ao lado do morro do Cechella. Do topo do morro do Link. Do bairro do Campestre do Menino Deus e de quase todo o Itararé. Da área do pátio de manobra da linha férrea ele é senhor absoluto, reinando nas alturas. Mas hoje, depois de 83 anos, apenas a uma distância bem grande mantém a majestade. O Monumento ao Ferroviário é uma ruína em adiantado estado de decomposição. Experimente ir até lá se tiver coragem e amigos grandes e fortes para acompanhá-lo. Mas não vá à noite.


Equipe da Ponga na pedreira abandonada do Linck

Você terá de deixar o carro ali embaixo, em frente às casas que circundam a parte de baixo do acesso e das escadarias. Não há estacionamento. Uma placa enferrujada mostra que o cenário será desolador, desde o momento em que você resolver começar a subir. Primeiro tem de driblar um matinho rasteiro. Os degraus são traiçoeiros se tiver chovido há pouco tempo. Não busque socorro no corrimão murado que compõe a escadaria. Cuidado. Muitas partes estão descoladas, rachadas e algumas já caíram ou se encontram em precário equilíbrio. Quando se chega ao primeiro nível de altura, já se pode ver abaixo o Campestre do Menino Deus, mas não se encoste no parapeito. Também está em falso. Algumas vistas já não avistam nada devido às árvores que cresceram abaixo e se erguem por sobre a estrutura. Os degraus são vencidos rapidamente. Embora a paisagem da cidade seja bela de um lado, com os morros e o lago Vacaí-Mirim, de outro, a situação do Monumento é triste.

EMBORA A PAISAGEM DA CIDADE SEJA BELA DE UM LADO, COM OS MORROS E O LAGO VACACAÍ-MIRIM, DE OUTRO, A SITUAÇÃO DO MONUMENTO É TRISTE.

Não há mais monumento. Temos muito mato, ervas daninhas, lixo de todos o tipo, pichações e grafites ( ). E muito lixo do lado de fora do parapeito. Garrafas de bebida, latas de cerveja e camisinhas usadas se espalham na borda e pelos cantos da área murada no topo do monumento. O local virou point para festas clandestinas. De fato a vista noturna é de arrepiar, mas a desordem mostra que os frequentadores devem preferir o isolamento das autoridades para ocupar o local que deveria ser público. Mas o passado e as histórias das pessoas que deram um destino a Santa Maria, ao erguer a ferrovia, estão relegados a esquecimento da maioria da população e em especial do poder público.

– Achei que era encrenca. Quando a gente vê este movimento boa coisa não deve ser – diz o morador da casa ao lado de onde deixamos o carro.

Ele rapidamente se embrenha na casa e desaparece. Não estava para conversa. Os olhos magrinhos revelavam medo e receio das outras pessoas. Uma sensação contrária ao sentimento que levou o então governador do Estado, Flores da Cunha, em 1930, mandar erguer o monumento devido aos ferroviários da cidade terem ajudado na condução de Getúlio Vargas até o Rio de Janeiro, na época da Revolução de 30. O que era uma celebração à coragem e ousadia dos ferroviários, é hoje o monumento de descaso com o passado. Mais um motivo para que a região seja reocupada pelos moradores. A revitalização da área verde de Santa Maria passa também pelo Monumento dos Ferroviários.

Pichado, sujo e esquecido

Não dá para falar de Santa Maria e não vivenciar o trem. Desde 1885, este ente fantástico corta o dia e a noite em um griteiro alucinante. O trem está hoje jogado em um pequeno porão empoeirado e úmido do subsolo da cidade, encarcerado em uma volátil prisão da memória, patrimônio intangível de um povo, expressão de uma cultura hoje com vergonha de seu passado recente. Hoje o trem é para muitos mais problema que solução. Embora gere empregos, deixe impostos, o caráter exclusivamente de transporte de cargas isolou o trem do imaginário popular.

Os trilhos circundam a cidade de leste a oeste para depois se perderem nos morros, sensualizando em curvas a maior subida ferroviária do Estado. A obra é monumental. O Monumento ao Ferroviário imortaliza esta epopeia da modernidade santa-mariense e é a testemunha viva do ocaso do trem. Sujo, pichado, quebrado. Ornado de lixo, sem luz, forrado de camisinhas usadas, latas de bebidas, garrafas e PETs esverdeadas e transparentes.

Pode ser visto do topo do Cechella, do Campestre, do Morro da Pedreira e da cidade. São 360 graus de uma dualidade que divide dois mundos. Santa Maria do pampa, cinza, vertical no centro concretado e esparramada em loteamentos-afasta-pobre-do-centro que espicham a silhueta da cidade de leste a oeste. E a Santa Maria Verde, cidade suburbana de contraste entre vilas e pequenas propriedades.

O senhor Dalsi Fenault tem 62 anos e mora desde sempre no caminho que leva ao Rincão do Soturno. Funcionário aposentado da Rede Ferroviária, sua com uma enxada em uma minúscula lavoura de cana ao lado da estrada de terra, separada por um cerca de arame farpado bem esticada. Tem 5 hectares onde sonha em criar cavalos crioulos. Suas terras são delimitadas pelo Rio Vacacaí-Mirim, que cruza bonito, elegante, com água límpida em pequenas corredeirinhas.

– Meu genro e minha filha moram na cidade. Eu fico por aqui mesmo. Eles estudaram e tiveram esta ideia dos cavalos. Aí eu vou arrumando o terreno, para que fiquem uns pastos bonitos. Aqui que eu gosto de ficar – encerra a conversa, com um gesto genérico com a mão que se defendia do sol a pele já bem manchada pela luz inclemente.

Ganhamos a estrada, subimos pelo perau, seguimos pelos paralelepípedos de Itaara até a região das nascentes de cima dos morros, de onde vem tomando corpo o Rio Vacacaí-Mirim, ainda um pequeno córrego que se origina de muitos banhados e áreas úmidas espalhadas pelo topo dos morros. Deixamos o carro e nos infiltramos em direção ao topo da cascata Assis Brasil. No caminho encontramos o pessoal da vigilância ambiental que despejam bacilos para fazer o controle biológico do mosquito “borrachudo”. De acordo com Atílio Flores e Fernando Paiva, o procedimento é feito há mais de 20 anos. A tecnologia é importada dos EUA, desenvolvida em Israel e líquida até 95% das larvas dos mosquitos.


Larvas de mosquitos borrachudos no alto da serra, em Itaara, na região das nascentes

Vamos até a beira do precipício. Já conhecia o lugar. Estivera ali há dez anos. Ali, tranquilamente, se despenca por 70 metros o Rio Vacacaí-Mirim. Sento ao sol, em uma pedra e me ponho a escrever. O poder do abismo é um grande portal. A queda do rio, seu salto não é morte, é sim promessa de vida. Lá se vai a água das nascentes para o vale. Os cerros dão água para a vasta planície da campanha. Aqui é o ponto de troca. Na água olhamos o passado, o presente e o futuro. Os índios charruas, os gaúchos, os espanhóis e portugueses, padres, militares e aventureiros, todos andaram e beberam destas eternas águas. Pedras e árvores e homens. Mas houve um desvio e o homem virou coisa. Passou a viver só na pedra, sem terra e sem verde, sem semente e sem fruto. Acinzentou-se. Abdicou do verde, da água e da luz.

Uma bacia hidrográfica pode ser muitas coisas. Grandes rios que se negam a serem aprisionados em tubos escuros de concreto e derrubam tudo em suas enxurradas. Já as águas menores vão sendo soterradas vagarosamente pelas cidades. Primeiro se retiram as árvores. A árvore é sempre a primeira a morrer. Faz a casa e o fogo. O homem queima a árvore, faz a casa e planta as sementes. Quando a mata vira campo, nas encostas, a terra não suporta mais a chuva. E como na cabeça do careca se vai morro abaixo, carregando pedra, madeira, terra. Agora a água vira lodo, lama. O rio pequeno vira sanga, imprensado, perde verde e perde vida. Os que seguem a correr acabam represados em lagos, estoques de água para um depois de amanhã a cada dia mais incerto. Mas, nos capoeirões a mata sempre retorna, e tem na flor da pioneira calandra loca um amarelo reluzente de esperança. Ao verde, se dado tempo e espaço, há regeneração.

SANTA MARIA TEM O CALDO CULTURAL PROPÍCIO PARA A EXECUÇÃO DE UMA NOVA CIDADE: HISTÓRIA, CIÊNCIA, TRABALHO, TRADIÇÃO, ELEGÂNCIA E ORIGINALIDADE. AGORA É HORA DE EXECUTAR.

Em meio a estes dois lados de um único mundo, o Monumento ao Ferroviário é clara evidência que os moradores do lado de concreto estão apartados do lado Verde por conveniências e comodidades. E fazendo concordância, existem poucas iniciativas públicas para reverter este quadro. Mas muito pode ser feito. A única hipótese que não precisa ser testada é repetir o modelo de cidade do lado Cinza, no lado Verde. Já se tem certeza de que o modelo não vai atender à população.

Porém, mesclada em áreas verdes intercaladas com as manchas urbanizadas, como prevê o Plano Diretor da cidade, uma nova realidade pode nascer. Santa Maria tem o caldo cultural propício para a execução de uma nova cidade: história, ciência, trabalho, tradição, elegância e originalidade. Agora é a hora de executar. Falta pressão popular.

Uma das nascentes do Rio Vacacaí-Mirim, na serra de Itaara

Existem muitas possibilidades exequíveis para o Lado Verde de Santa Maria:

  • 1. Uma vez criada, a APA pode ter dotação orçamentária e receber recursos para a realização do zoneamento ambiental e estudos de inventários de um plano de manejo.

  • 2. Fim das invasões nas áreas de proteção permanente como encostas e margem do lago. Aproveitamento das áreas de campo no sopé do morro para estacionamento e colocação de guaritas de segurança, atividades de educação ambiental, pesquisa e extensão.

  • 3. Atividades de educação ambiental, pesquisa e extensão.

  • 4. Criação e execução da implantação do parque do Lago do Vacacaí-Mirim (Barragem do DNOS). Infraestrutura de laser, urbanismo, canoagem, plantio de árvores nativas no entorno e remoção de moradias dentro da área de preservação permanente. Atividades de educação ambiental, pesquisa e extensão.

Projetos para os parques já existem, faltam recursos para a implantação

A cidade de Santa Maria poderia ser a cidade dos parques. Já existem 11 projetos prontos dentro dos arquivos do Instituto de Planejamento do município. Tudo começou com a elaboração do Plano Diretor (para saber mais leia os anexos D e G e o anexo 12 da Lei de Ocupação do Solo). O parque dos Morros e o Palloti já estão com os Planos de Manejo em andamento. Em finalização, o Parque do Jóquei. O dinheiro veio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird), quase R$15 milhões. Mas algumas licitações de etapas não encontraram interessados em executar. Saiba dos detalhes na entrevista abaixo com a arquiteta do Instituto de Planejamento de Santa Maria (Iplan).

Entrevista

Priscila Quesada, arquiteta responsável pela elaboração de alguns projetos dos parques para a cidade

Ponga: Qual a importância para Santa Maria da criação dos parques?

Resposta: O sistema de parques foi criado para demonstrar a necessidade de intercalar áreas verdes com áreas construídas permitindo a melhoria da qualidade de vida no futuro, da população, em termos de planejamento estratégico da ocupação e da conservação do solo, de preservação destas áreas naturais, dos recursos hídricos de forma a que se possam preservar os mananciais e também das encostas (dos morros) de Santa Maria. Além de toda a questão da qualidade ambiental da cidade que a criação dos parques reporta, tanto na conservação como de recriação e qualificação dos usos.

P: Quais as dificuldades que a implantação destes projetos enfrentam?

R: A principal dificuldade é obter recursos financeiros para a implementação, para que possam ser colocado equipamentos. Um parque, por exemplo, precisa ter um local de atendimento ao turista, precisa ter uma entrada, um banheiro que tenha qualidade de uso, além das necessidades especiais que as pessoas querem ter para aquelas áreas, como quadras, campos, trilhas ecológicas. E tudo isso demanda recursos para fazer a implementação. Para isto a gente precisa ter uma estratégia para ir implementando por etapas. Já na elaboração dos planos de manejo ou plano urbanístico precisa ter verbas para ir implementando estas etapas.

P: Santa Maria tem a peculiaridade de possuir dentro de sua área urbana morros e rios. Este potencial é utilizado?

R: Por alguns grupos sim. Existe a demanda, a busca por estes atrativos nos fins de semana para fazer passeios e caminhadas. Porque realmente a gente tem áreas lindas em Santa Maria com potencialidades. O Parque do Morro, que é uma área recentemente adquirida pelo município, é um local que possibilita este tipo de atividade, agora ainda sem a colocação de equipamentos, mas num futuro estarão lá.




“A MINHA ALMA
ME SORRIU
E EU ME VI FELIZ.”

O futuro é a infância. Quando perguntei ao Seu Amaral o que fazer hoje para que a região tenha um futuro, o homem de barba rala e olhos vivos ficou quieto, a pensar. Dois dias depois, quando o reencontrei novamente ao fim do acampamento, ele tinha uma resposta.

– Para ter futuro, só educando as crianças. Tem de conscientizar. O adulto já está viciado, é pior que cachaça. Tem de ser pela criança, mas a educação está de arrasto, está se perdendo.

Eriton Amaral tem 66 anos e mora no fim do fundo do vale do Rio Vacacaí-Mirim. Há mais de 20 anos, recebe os muitos visitantes do local, que buscam as cascatas, cachoeira e paredões para fazer rappel. Muitas coisas o preocupam. O que será da propriedade quando morrer, o que fazer com os ladrões de gado, a história do lugar onde vive, o futuro da reserva de água e verde da qual hoje ele garante a preservação. Ele já vendeu peças automotivas da Orbid, multinacional alemã. Viveu bem, casou, teve filhos, educou-os e agora estabeleceu uma base secreta para fugir do caos da cidade que é obrigado a visitar ao menos uma vez por mês em sua camioneta Chevrolet Azul D-20 turbinada.

Seu Amaral tenta organizar a comunidade para preservar região e o rio.

– Eu sou antigo. Estes cerros já foram lavoura. Dos anos 80 para cá, aumentou a fiscalização, tem o Ibama, estas coisas. Aí ficou mais cuidado. A gente já ajudou muito, tínhamos um projeto de limpeza e conservação da comunidade, vinha o pessoal da universidade – conta Amaral, enquanto prepara o chão com uma enxada à frente de sua casa, onde está a casa de um dos muitos cachorros a que ele dá guarida.

Também perguntei ao Carlos, do outro lado dos morros, o que precisava melhorar no local onde morou e criou os filhos, uma das últimas propriedades na subida da Rua das Carmelitas, onde um imponente casarão, em estilo italiano colonial, conserva com cercas de pedras um rebanho de vacas leiteiras. O local é um testemunho da criação da cidade. Foi uma das primeiras leitarias de Santa Maria, num tempo em que o Bairro Itararé era o centro econômico da cidade. Os italianos vinham para trabalhar na linha férrea e adquiriam propriedades para tocar outros negócios e fazer a América. João Linck Sobrinho teria vindo em 1898 para o local, onde seu pai tinha adquirido terras, dos trilhos até a encosta dos morros. Em 1928, Linck ergueu a sua casa junto à leitaria e passou a realizar as entregas de leite, de carroça. Assim foi por muito tempo. Hoje, as vacas de leite, de raça holandesa, perambulam pelas velhas cercas de pedra, ruminando e balançando seus tetões e úberes cheios de leite. Um pouco atrás da casa, logo que se sai do mato fechado, depois de passar por restos de uma estrada antiga que subia o morro, encontrei Carlos com uma foice, cortando pasto verde para as vacas.

Ele suspende o trabalho para me ouvir tagarelar, eu criatura esquisita, emergida do meio do mato com cinco pessoas desconhecidas, uma máquina de foto a tiracolo, um bloco na mão, mochila vermelha nas costas. Ele para para me ouvir, sem pressa. Me deixa falar, discorrer sobre o que eu vi em seu mundo e lhe fazer uma pergunta: o que precisa melhorar aqui?

– Nada. Aqui é muito bom. Tem tudo bem perto.

– Você gostaria de morar em outro lugar? – insisto.

– Não trocaria este lugar por nada no mundo. Aqui eu criei meus dois filhos, um guri e uma guria. Hoje eles moram um em Passo Fundo e outro em Porto Alegre. Mas eu não saio daqui. E hoje a gurizada mais nova não quer fazer este serviço – fala, apontando para a pastagem que ele cortava para as vacas.

"NÃO TROCARIA ESTE LUGAR
POR NADA NO MUNDO"
Luiz Carlos de Oliveira,
morador do Bairro Itararé

O homem de barba grisalha e rosto suado tem 55 anos. Fico olhando pra ele sem muito o que falar. Estou cansado da caminhada de 5 horas e quase quinze quilômetros. Os colegas já seguiram o caminho, até o Charles que sempre fica para ouvir as conversas já rumou. Quem retoma a conversa é Carlos, na verdade Luiz Carlos de Oliveira. Ele conta que um problema que havia era roubo de gado, mas mais para o lado do Campestre. Ali nos altos dos morros também tinha roubo, bastante, até que o pessoal parou de criar. Não valia a pena.

– Por aí quase não tinha mais mato. Mas há uns 20 anos pararam com as criações e o mato retomou. Tinha muito roubo. Eles levavam mais de sete rezes de uma pegada só. Me lembro de um tal de Perneta do Morro da Xurupa que era tinhoso – recorda, devagar, Carlos, enquanto mexe com o cabo da foice no chão.

Como que para se despedir do estranho que surge do nada, ele se apruma, se aproxima um pouco e fala sem se alterar:

– O problema é que do lado de lá não tem nada, lá na invasão. Aqui tem escola, posto de saúde e hospital. As ruas são calçadas e tem esgoto. Aquelas pessoas de lá não têm nada. Aí não dá.

Quem sabe, sabe. Do outro lado do morro, Seu Amaral pensa de forma muito semelhante. Ele vive bem, está integrado nas comunidades, participa da associação, ajuda em campanhas de conscientização ambiental, abre sua propriedade para estudos científicos, para praticantes de esportes de aventura e até pouco tempo, para quem quisesse apenas conhecer as belezas da região das nascentes do Rio Vacacaí-Mirim ( ). Agora, depois de problemas com bêbados e até uma morte na cascata, seleciona pessoalmente quem vai ter acesso. Mora só com a esposa. Os filhos ganharam o mundo.

Seu Onório comanda Cancha de Bocha e lamenta.

Na sua casa, ao lado do negócio, um adulto corta uns tocos com um machado assistido por um garoto.

– São meu filho e neto. Sempre que podem dão um pulo aqui. Mas ele tem emprego no comércio na cidade – explica com um pouco de orgulho triste.

Enquanto eu peço um mate para encompridar a conversa, ele me conta que até tinha criação de gado leiteiro e ordenha, mas os roubos acabaram com o negócio. Não só dele, mas de toda a vizinhança.

– Este pessoal que vai invadindo, não respeita nada. Acabaram com as criações – resume.

Na estrada, encontramos belas residências, até com piscinas, áreas arborizadas, grama e churrasqueiras bem conservadas. E também, muitas moradias bem mais humildes, no pequeno centrinho próximo ao local onde o ônibus encerra sua rota.

Uma nova possibilidade. Viver em pequenas áreas rurais com serviços públicos e geração de emprego e renda. Idosos e casas de fim de semana. O vale do Vacacaí-Mirim produz vinhos, salames, mel, leite, hortaliças. Mas é pouco. Tem um potencial ainda não corrompido pela especulação imobiliária e as invasões e ocupações descontroladas. Um potencial que precisa de uma boa ajuda para deixar de ser apenas um potencial.

O leito pedrento e a gruta

Como é um rio de morro, se você tirar o rio? Bom, para começar você tem muitas pedras. Não há nada absolutamente plano. São enormes pedras de tamanhos indescritivelmente variáveis, formando uma extensão mais irregular que a pior estrada do mundo. Não, ali não passaria nenhum veículo humano. A estrada da água é aberta com uma paciência milenar e uma força titânica. São usadas técnicas desconhecidas para o ser humano. Mas a estrada segue o melhor caminho.

Leito pedrento do Rio Vacacaí-Mirim, na região das nascentes. Rio corre por baixo das pedras.

– A água sempre vem pelo caminho mais fácil. Ela se infiltra, desvia, resolve, arranca pedras e mata, desbarranca, desmorona, flui, escorre, e a gente não sabe como e porque isso acontece – diz seu Amaral, quando eu lhe pergunto sobre o rio que nasce no pátio único de sua morada.

– Olha esta pedra – me provoca Alessandrinho – ela está aí há muito tempo. É impossível saber quando ela vai rolar lá para baixo. Depende de tanta coisa, que não dá para saber, nem calcular.

Alessandrinho vai andando comigo vagarosamente, à beira do precipício que se avizinha. Bem ali, uma enorme pedra, do tamanho de um fusca, repousa quase caindo no despenhadeiro de 40 metros.

Enquanto os colegas fazem uma corrente humana para pendurar o fotógrafo Charles Guerra na borda do precipício e fotografar a cascata bem de perto, eu paro a observar e filmar cipós da grossura da minha coxa que se retorcem ao lado do rio, cobertos de verdes camadas de todo o tipo de plantas e musgos. É impressionante. De pronto me lembram antigos desenhos animados e também o Tarzan mais moderninho que escorregava em cipós com os pés. As flores colorem determinadas regiões do olhar, rompendo com as infindáveis variações de tonalidades de verde. O verde se apropria de tudo, pedras, árvores. Os troncos têm todos a cobertura de penugens verdes, fofas como se fosse tecido. As imensas árvores caídas, resultados da força das tormentas de vento, desmoronamentos de terra e rocha e inundações magistrais, agora, descansam como cinematográficas pontes suspensas, de margem a margem.

Da cascata maior, a chamada de Assis Brasil, até a cascata da gruta (alguns chamam de cascata do sapo, nome que seu Amaral não aceita) são quase meia hora de caminhada em terreno pedregoso. Vamos pelo leito do rio caminhando em precário equilíbrio, por rochas que soterram o rio, sabe lá quantos metros ou centímetros abaixo dos nossos pés. Por esta extensão é como que o rio mergulhasse. Discretamente, ele desaparece para reaparecer uns 500 metros adiante, calmamente em um pequeno laguinho. Dali, segue calmíssimo até a cascata, onde está a rocha equilibrada.

– Vem cá, Cadré, filma isso – berra Paulinho, me tirando do meu devaneio.

Me aproximo devagarinho pelo leito escorregadio. Lá estão os guris segurando o Charles, cada um por uma perna, apoiados em pedrões.

Ele, pendurado, fotografa a queda d’água que despenca em seu infindável percurso. Um vale de verdes magníficos emolduram uma gruta onde meus pés me levam ao fazer o contorno para descer até o acampamento. Não existe nada que não seja úmido. Nem pedra, nem galho, nem nada. O caminho é perigoso, pois lá embaixo, só as rochas nos aguardam. Vamos em fila indiana, agarrando-nos aos galhos mais firmes, pisando nas pegadas dos colegas, escorregando e reerguendo até que o terreno estabiliza. Falta um trecho de uns dois metros, meio sem trilha e sem ter onde agarrar. É meio que iarrrurú e foi.

– Iarrrurú! – e fui, com uma mão para cima para livrar a máquina do barro ou das pedras.

Uma luz, uma pedra, um instante de tempo

Em vez de ir para nosso improvisado acampamento, onde o Paulinho se esforça para fazer fogo com lenha verde, vou pisando devagar pelo pequeno laguinho onde cai a cachoeira. Ela cai em um jorro gelado e forte que pode te derrubar. Depois de refrescar a cabeça vou indo em direção à gruta que circunda todo o vale. É uma subida no barro liso entre pedras. É tudo marrom claro. Lama. O teto de pedra é imenso. Uma rocha única, imensa. Mas é monumental. Tem o formato de uma meia lua. Bem na boca tem uns 15 metros de altura, mas vai decrescendo até que bem no fundo não consigo ficar em pé. No fundo, rochas servem como bancos, semelhantes a leitos. De fundura, bem que deve ter seus dez metros, pois foi a quantidade de passos que me levaram até lá. Me sento bem ao canto, do lado oposto de onde cai a cachoeira. É uma Rocha imensa que está sobre minha cabeça. Uma Rocha com R maiúsculo. Ela pinga umidade em muitos locais, onde se formam amontoados de (difícil dizer) espécies de fungos e seus primos. No canto onde estou, atrás de um pedregulho de superfície quadrado vê-se um espaço onde caberiam umas 10 pessoas amontoadas. É a parte mais seca. Encontro restos de lenha queimada, prova de que foi feito algum churrasco no local. Me sento ali e vejo um local lindo, impactantemente lindo, porém completamente distante de tudo que nós seres humanos urbanos chamamos de casa. Mas é uma casa. É um palácio. Existe há centenas de anos e fica a cada dia mais bonito. A decoração e o paisagismo são tão perfeitos que não há um minúsculo ponto que não esteja em constante modificação. É um palácio de Verão de espécies mais adiantadas que a nossa. Lembro que os maiores pintores que fizeram os quadros mais lindos da natureza que hoje valem milhões, pintaram o que viram – do seu jeito, não o que inventaram. Estou ali parado, usando meus cinco sentidos e minha percepção deste local é parcial. Fico por ali, imaginando e sendo imaginado. Um monge cartuxo de Ivorá uma vez havia me dito que trocamos todos as células de nosso corpo há cada sete anos. Bom, posso saber que depois de hoje, troquei todas as células de meu corpo. Sou eu fora de mim mesmo. É assim:

– Há 40 minutos estávamos olhando a parte de baixo da cascata Assis Brasil, a maior da região que despenca de 70 metros, fazendo um bailado ao vento, em seu fino jorro de água, trazendo o Vacacaí-Mirim de Itaara para Santa Maria. Estávamos no fundo do vale. Além dali, não há mais caminho.

– Ontem estava dependurado em uma pedra, tentando ver sem sucesso o fundo do vale, onde a Cascata Assis Brasil despenca. Olhava os paredões brancos de arenito e imaginava como seria este vale de árvores de todas as espécies que se espraiava entre morros em direção ao leste.

– Antes de ontem estava caminhando na cordilheira de morros e observando ao longe, bem longe, a pequena fenda por onde a água escapava em meio ao verde e formava a Cascata Assis Brasil. Era uma imagem de um vale profundo que parecia o infinito intocável.

Uma luz, uma pedra, um instante de tempo ao lado da grande gruta.

E agora estou sentado sob toneladas de rocha no oco do leito deste rio Vacacaí-Mirim, em uma gruta primordial, com árvores tão altas que antes das 17 horas vai começar a ser noite. Vamos acampar olhando para a gruta, imersos no vale que percorremos por todos os sentidos. Vamos imergir na escuridão do rio, em suas nascentes, em sua pureza e complexidade. Uma noite de acampamento no mato. O verde nos torna melancólicos de nós mesmos. Melancólicos por termos perdido nossa natureza. Fico transtornado em ver, naquelas águas calmas, o que milhões de anos de evolução fizeram comigo. Um passo profundo, um mais leve e um passo estendido.

Uma dança, uma cadência. Um pensamento profundo, um pensamento leve, um pensamento estendido. Não vejo sombras. Mas sinto os ventos. Já sobe a fumaça do fogo do acampamento logo adiante. A água cava fundo, mas é leve, tão leve que vira gotículas nos véus das cachoeiras. E se estende por milhares de quilômetros ao mar, início, fim e meio de tudo que existe neste planeta.

Cascata e o seu véu de águas, um momento de poesia natural

A região da microbacia do Rio Vacacaí-Mirim está se deteriorando, anos após ano. A pequena produção agrícola destroi as matas remanescentes no alto da serra, em Itaara. Existem técnicas nas pesquisas feitas pelas universidades que poderiam ser aplicadas nas propriedades aumentando a renda e garantindo a preservação do patrimônio natural. Mas os proprietários rurais não tem acesso a este conhecimento. Nem o buscam. Nem recebem. Os pesquisadores não fazem extensão e a riqueza do local não é explorada com sabedoria. Hoje, uma floresta em pé é mercadoria, tem valor monetário. Tem alto valor cultural. É conhecimento vivo da esplendorosa complexidade da natureza, fonte da vida. Os poderes públicos são inertes, trabalham sempre depois do problema ambiental já estar acontecendo. A população não recebe educação ambiental para saber ocupar o solo. Invasões ilícitas em locais de preservação permanente ou de risco são toleradas pela política rasteira de fabricação de currais eleitorais. A urbanização desordenada vai acabar matando o Vacacaí-Mirim, assim como aconteceu com o Cadena e outros cursos de água que cruzavam a cidade. O político só age mediante pressão popular, assim como o Ministério Público e outros órgãos. Este círculo vicioso tem saída. Mas é necessário ações da sociedade e suas lideranças.

Mostrar o lado verde de Santa Maria. Lembrar que seu passado já foi assim. Que foi por causa de belos morros, água abundante, terra fértil, paisagens únicas que o local se mantém habitado por seres humanos há mais de 10 mil anos. A cidade é apenas um aspecto recente. Não é o mais bonito, nem o mais feio. Muda muito. Na verdade está mudando um pouco a cada dia, em cada minuto, em cada nascimento e em cada morte. Nada no futuro está definido e nada no passado deve ser esquecido.

Equipe da Ponga Reportagens em Profundidade

Equipe de trabalho de campo

Repórter: Carlos André Echenique Dominguez, jornalista, foi Editor de Política e colunista do Diário de Santa Maria e Jornal de Santa Catarina. Trabalha com reportagens ambientais e videorreportagens (Os Ribeirinhos do Rio Uruguai, O Silêncio dos Afogados). É professor do Curso de Jornalismo da UFPEL (RS). Repórter da Ponga Reportagem em profundidade E-mail:cadredominguez@gmail.com

Imagens: Charles Guerra

Guias, mateiros, carregadores, entusiastas, ensinadores: Alessandro Hebert de Oliveira, Paulo Dill e Alessandro Miola

Apuração: 2014 e 2015

Equipe de edição

Jornalista web constructor: José Antônio Meira da Rocha
Edição de Vídeo: Nômade Produções
Trilha sonora original: Jerry Job
Trilha sonora original do vídeo: Nômade Produções
Edição web e imagens em vídeo: Carlos Dominguez
Design Gráfico e Digital: Thaís Cristina M. Sehn (âme studio criativo)
Programação do site: Fabiel Luís Sehn

Produção 2020-2021:
Ponga Reportagens de Profundidade
Publicação: 15 de janeiro de 2021
Cidade: Pelotas (RS)
Reportagem disponível em: http://pongapress.com/vacacai/

MILONGAGEM

Reportagem + Milonga = reportagem milongueada = Milongagem

Esta reportagem se inspirou na música de Vitor Ramil, Milonga das Sete Cidades, música gravada no CD Ramilonga. A proposta é ser uma reportagem que leve em consideração os sete atributos da milonga presente na Estética do Frio, texto do compositor pelotense onde ele fala da estética de sua obra.